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Era um livro velho de gravuras, tão velho que, na gravura que ilustrava a mãe a dar banho à criancinha, a mãe tinha-se esfumado e o bebé que estava ainda na banheira continuava careca ... com umas longas barbas brancas.
Estive vai não vai para abrir a caixa. A ideia de o fazer tolheu-me a ideia de o fazer.
A CABRA ESBAFORIDA
As cabrinhas não paravam de espinotear no montículo de areia. Andavam à roda numa fona, uma atrás da outra, às marradinhas no nada.
O gato experimentou o chapéu de feltro novo que a gata tinha encontrado numa antiga lixeira, lavado e engomado com esmero. Mirou-se ao espelho, ajeitou-lhe a aba, agitou o pingalim e imaginou-se no papel de Indiana Jones. O coelho ria-se. Ria-se da vaidade do gato, e ria-se da toleima do caracol que insistia em dar a volta ao mundo na carapaça óssea da tartaruga.
É claro que o caracol fora instigado pelas ideias da boneca, mas ninguém, nem mesmo a boneca, percebia onde ele tinha ido buscar essas ideias. Sabemos que tudo o que é dito sai como um fio de voz pela boca das pessoas e fica preso como um papagaio a planar lá nos céus, cada vez mais longe, mais longe, mais longe...
Houve alturas em que se pensava que os discursos faziam parte de histórias e que cada história criava e mantinha a identidade do indivíduo. Os bebés anafados continuavam a história dos progenitores e criavam a sua história pessoal que engordava ao sabor do tempo, narrativa expressa em termos de currículo de vida, de autobiografia; ou de romance, quando escrita pelo outro. Aliás, a própria narrativa separava o próprio do outro para criar o próprio. A boneca sacudiu os farrapos da cabeça como que a afastar este curso de pensamento que levava a nada. Ela sabia que o eu era uma ilusão, que se retirasse os trapos que a envolviam, largando-os no chão, nada restaria: o eu, como a identidade da cebola, são as várias camadas de trapos que se envolvem umas às outras.
As cabrinhas não se cansavam das cabriolices com que entretinham o adolescer complicado das suas hormonas. O cão é que não gostava dos respingos de areia que lhe chicoteavam o focinho gelado e húmido, aquilo era ferramenta para manter em excelentes condições de operacionalidade! Traçou a pata peluda bem à frente dos olhos ficando a espreitar por uma nesga de horizonte e resignou-se à petulância das cachorras de cabra.
A CABRA ESBAFORIDA
A boneca sentia-se enjoada, fenómeno que já se repetia há uns dias e que as pessoas começavam a comentar. A gata, mais sabida, e que não dava ouvidos à voz do povo, preparava-lhe umas tizanas de hortelã do rio para atenuar os enjoos, que a boneca bebia sofregamente, mas que lhe provocava uma vontade constante de urinar. Quando lia as revistas, sentada debaixo do carvalho gigante, as letras e as gravuras bailavam à frente dos olhos, pesava-lhe a cabeça e acabava por ceder ao torpor da sonolência, a revista escorrendo-lhe pelo regaço para o chão, com os dardozinhos de sol que se escavam por entre as frestas da copa do carvalho a amolecerem o seu corpo de trapos.
[Um dos velhos coçava insistentemente num dos pontos da cabeça, mais ou menos na zona temporal direita, e olhava esbugalhado para as dez cartas de copas tão vermelhinhas que lhe tinham ido parar às mãos. Infelizmente, como não tinha sido ele a dar, os trunfos passeavam-se indecorosamente por outras mãos. Ainda se o parceiro tivesse um bom jogo!.... E olhava para a cara dele mas só lhe via o carão embezerrado e seco que vestia todas as manhãs e que o acompanhava até ao deitar. ]
As vozes malévolas convenceram-se de que aquilo era obra do ouriço. Nas noites de geada, o pobre enroscava-se nos trapos da boneca para evitar hibernar. Como o inocente passava a noite toda a remexer-se, a boneca costumava aparecer de manhã com os trapos todos esgaçados pelos espinhos do ouriço, que a gata se prestava de imediato a cerzir. O que eles não sabiam, o que a gata sabia de sobra, era das plumas da pomba que se amontoavam no interior dos trapos formando uma espécie de ninho que o ouriço aproveitava para se manter quentinho.
A uns quilómetros dali, na outra margem da estrada, o mocho encontrou a criança.
- Olá, criança, o que andas aqui a fazer sozinha? - Perguntou o mocho movido por uma mistura de curiosidade e de ternura.
- Apanho florinhas, senhor mocho. É para dar à minha mãezinha...
- E onde está a tua mãe, criança?
- Está naquele monte - apontou - onde as pessoas ficaram todas a fazer ó-ó no chão quando o tempo se rachou ao meio e apareceu tanta luz.
O mocho, que até aí só coçara a cabeça, ficou petrificado e sentiu gelo dentro de si.
- E que vais fazer a seguir?
- Vou procurar a minha mãe, vou-me sentar ao lado dela à espera que acorde e vou-lhe dar estas lindas flores - e apontou para as flores que tinha na mão. - E ela vai ficar contente, e vai dar-me muitos beijinhos, vai puxar a minha cabeça para o colo dela e vai fazer-me muitas festinhas.
O mocho ficou sem saber o que fazer. Ainda pensou em dar o alerta à águia e pedir-lhe que lhe fizesse um ponto da situação de como corriam as coisas lá para Leste. Mas como contactá-la agora que ela andava sempre em missões complicadas e prioritárias? Como não podia deixar a criança ali, entregue aos seus próprios cuidados, assobiou no sentido contrário ao do vento e, passados curtos instantes, ouviu o restolhar no chão: era a cobra que respondia ao seu apelo. Depois de um relato breve, pediu à cobra:
- Tens que tomar conta da criança e levá-la para o acampamento. Entrega-a aos cuidados da gata.
Dito isto, lançou-se em voo ascendente e perdeu-se no horizonte, por cima da rama das árvores. A cobra fitou a criança nos olhos e disse-lhe em tom firme, mas carinhoso:
- Vem comigo ao nosso acampamento para conheceres amigos. E vais comer alguma coisa, senão a barriga cola-se-te ao peito. Depois, trataremos de encontrar a tua mãe.
- O que são amigos? - Perguntou a criança à serpente.
- Amigos... ?
A pergunta era tão embaraçante que até doía. De pouco serviria dar uma definição por condição necessária e suficiente, ou mesmo por género e diferença específica. Mesmo que tivesse o talento para conseguir tais definições... Por ironia, a cobra achava-se muito terra a terra. Podia tentar dizer-lhe que era parecido com, mas não se lembrava de nada que se parecesse com a amizade. Podia dar-lhe alguns exemplos, mas os que lhe passavam pela cabeça não estavam ao alcance dos conhecimentos de uma criança. Há coisas que toda a gente sabe o que são e que não se explicam. Mas as crianças são assim mesmo: não sabem, mas querem saber. E não se demovem até saber o que querem. E quando ficam a saber, nunca mais querem saber disso. Quer dizer que cresceram, que perderam a frescura matinal. Só muitos anos mais tarde, quando estiverem novamente ao cuidado dos outros, é que vão parar outra vez para indagar de novo. Tudo. Radicalmente.