Estive vai não vai para abrir a caixa. A ideia de o fazer tolheu-me a ideia de o fazer.
[Acabaram o jogo com um empate e estiraram as costas por cima do espaldar das cadeiras. Um dos velhos disse, escancacarando os três dentes restantes em cujo esmalte restolhava a cauda murcha do Sol: "isto é que é vida!". Ao que outro anuiu com um arroto meio disfarçado pela idade e a cheirar a alho.]
O gato olha-me como que a adivinhar a minha intenção e sorri-se, afastando as moscas com o pingalim. O cão abanava o rabo de felicidade irreprimível, e babava-se de contentamento. A gata prosseguia na lide doméstica e abanava a cabeça enquanto pensava como podia a natureza manter viva uma espécie de exemplares tão tontos. E chegava mesmo a sacudir a cabeça como se isso fosse de feita a ordenar as ideias que lhe vinham à cabeça enquanto trabalhava. Havia quem gostasse de trabalhar e ouvir música. Ela acompanhava o trabalho com o seu caleidoscópio de pensamentos. A coisa às vezes ficava tão pegada que ela até pensava que o que mais fazia era pensar e que o trabalho era para acompanhar os pensamentos. Não que fosse inteligente e culta como a boneca de trapos. Ela não tinha as palavras certas para ampliar o som dos seus pensamentos de modo a que os outros a ouvissem. Aquilo era só para ela, um passatempo, dizia. A boneca passava horas a ler os jornais, apanhava aquelas palavras esquisitas no meio de frases ouriçadas como quem anda à cata de amoras silvestres. Depois, amandava-as de rajada, sem hesitar ou gaguejar. Uma verdadeira intelectual, ou, segundo uma expressão que ficara dos velhos tempos, "uma betinha da católica"! Aquelas coisas que ela lia eram escritas por pessoas que parentetizavam a vida para ter tempo para escrever sobre a vida. Os mais ousados procuravam adivinhar o futuro. Quem não queria saber do futuro era o caracol que voltara aos rodopios vertiginosos do skate. A lebre, já preparada para sair em expedição e de binóculos a tiracolo, conferenciava com a coruja que acabara de chegar, terminado o batimento nocturno dos prados e matas adjacentes. O dia começava assim assim. O gato aperaltava-se, compondo o laço e mirando-se no espelho das botas acabadas de engraxar.
[As quarenta cartas rodaram outra vez de mão e cada um foi ver o que lhe coubera em sorte].
A CABRA ESBAFORIDA