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Ao fim do "povoado" um renque de sobreiros, um pequeno paraíso arrancado à mão, ano após ano, à selva escura.
'Nel mezzo del camin di nostra vita
'Mi ritrovai per una selva oscura,
'Che la diritta via era smarrita.'
(Dante Alighieri,I, 1-2-3).
Este blog é um concerto entre a ÁRVORE (solista) e a FLORESTA (Orquestra) admitindo todas as variações, quer do tema, quer da forma melódica.
Em “árvore” cabe toda a vida, e até a morte! Lembremo-nos como o fundador da mitologia cristã redimiu o pecado mortal no “lenho” da cruz, facto não muito espantoso dado que tal pecado consistiu em colher o fruto da árvore da sabedoria. Árvore viva- árvore morta ou pecado-redenção. E como a mãe divina, para recordar esse facto reapareceu aos pastorinhos em cima de uma “azinheira”. Nos dias de hoje, nas escolas, incitamos as crianças a plantar arvorezinhas. Os antigos europeus ofereciam alimentos às arvores e ornamentava-nas com prendas coloridas, costume que chegou aos nossos dias atravésl do pinheiro do Natal. Quando era jovem enamorado da vida, sagrei paixões intensas a golpe de canivete no córtice das árvores velhas. Os meus nomes, os meus corações e as minhas setas por aí ficaram misturados com os de outros, anterior ou posteriormente gravados. Na ocasião do estertor do romantismo, a ampulheta e as moto-serras condenaram ao olvídio os “linkes” dessa primitiva inter-rede anímica e amorosa. Viva, pois a Internet! O romantismo regressou.
Da Wikipédia: 'A árvore é um tipo de planta que, entre outros, se caracteriza por ter uma raiz, um tronco e ramos de madeira. Pode ser classificada como uma planta com caule muito desenvolvido; resistente; lenhosa; com altura superior a 5 metros.'
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Aqui há tempos apareceu-me uma virgem.
E eu perguntei-lhe: "ó virgem, porque é que não apareces em cima da árvore?". E ela respondeu-me com aquele sorrisinho de virgem: " ó filho, nem te apercebes do incómodo. Isto é um espinheiro, com a copa cheia de espinhos. Para além disso, pousam aqui todo o tipo de aves e nunca se sabe se alguma é portadora de um virus ...". E lá continuámos a conversar sobre aparições seguras à sombra do espinheiro.
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No início, era apenas um amontoado de matagal, desorganizado, sombrio, atulhado de espécies silvestres inóspitas, que não apresentava outras referências que não a escassamente entrevista marcha milenar do Sol.
Ano e meio passado, havíamos já desbastado, com o trabalho dos sábados, silvas com caules da grossura de um pulso, vinhedo espontâneo, tentacular e trepador, e roseiras bravas, que floriam na Primavera como um manto branco sobre as árvores; havíamos sulcado os primeiros caminhos - referências outras que não a marcha milenar do Sol!
A certa altura apareceram as primeiras formas, quadrículas rigorosamente uniformizadas, curvas suavizadas, limites, sentidos - uma mão cheia de utilidades e significados, onde antes houvera apenas esquecimento.
Ano após ano, foram aparecendo as cores, uma tela de matizes fortes, um pontilhado de tons certeiros e contrastes acentuados.
Recentemente, obra de um projecto de engenharia arrojada que quase dava desastre financeiro, brotou a água, jorrando barrenta, espumosa, gorgolejante. E foram construídos o laguinho, o charco, o areal.
A bicharada apareceu, grandes e pequenos, peludos ou de carapaça quitinosa. Primeiro, o An Jie, elegante, inteligente e bonacheirão. Depois, a indescritível Julieta, siamesa de pelo ébano à mistura com um cenoura amarelento, certamente do presumível pai, o gatarrão anafado do vizinho Paulo. No ano passado, o An Jie desapareceu, a Julieta voltou grávida, deu à luz quatro rebentos, dois cinzentos e dois cremes. Sobreviveram dois: o Tigre, de pelo cinzento riscado, pequenino, afoito, amigável; o Areias, creme, grandalhão, reservado e afastadiço.
E bicharada de todo o tipo, aqueles seres minúsculos cujo destino é perecerem sob o peso marcial da botifarra urbana. A passarada, a bebericar a água do lago. Os bandos de perdizes, às dúzias, a fazerem-se à pista como loucas até largarem em voo sossegado em direcção a outras paragens. Um dia descobri um ninho das ditas, uma obra de paciência e bom gosto, uma boa dúzia de ovos dispostos em dois círculos concêntricos, rigorosamente ordenados.
O dia passa-se bem, mas depressa. Vem o pôr-do-Sol com a sua beleza majestosa e serena, onde irradiam ao mesmo tempo a luz e a escuridão.
A noite, carinhosamente, recobre todas as coisas com o seu manto de escuridão. Ouve-se mais intensamente a presença dos insectos e dos pássaros nocturnos.
Este ano fizemos lá casa. Já dá para passar o fim de semana.
Deixem-me, então, explicar como tudo começou: Estava um pouco na moda ainda. A ideia resumia-se a comprar a preço de saldo um relativamente extenso terreno ... no Alentejo. “Então, já compraste o teu monte?” - tornou-se o cumprimento habitual daquela época. Conforme cumpria à monotonia do assunto, a parte informativa da conversa resumia-se à distância a Lisboa, ao número de hectares da propriedade, ao estado da estrada que levava ao casario em degradação, ao ter ou não ter poço. Escalar a compra de uma série de bugigangas com terminação habitual em “or”, como o gerador, o tractor e quejandos, era o sintoma daquela doença denunciada por Eça e que consiste em levar todo o conforto da Cidade para as Serras.
É ponto assente que muita gente das nossas relações já tinha comprado o seu monte no Alentejo. Possuir um monte conduzia de imediato àquele estado de espírito de quem já plantou uma árvore, escreveu um livro ou fez um filho. Embora tivéssemos feito um filho (eu já ia, em bom rigor, no terceiro), e a minha mulher tivesse escrito um livro, pesava-nos no nosso ser mais íntimo aquela falha original de não ter um monte no Alentejo.
Ouvia dizer que os montes para comprar já escasseavam no Alentejo. Haver, havia. Mas não como fora antigamente, aos preços da uva mijona...
Voltei toda a minha atenção para um terreno na Beira Alta com o requisito de ter uma casinha toda de granito, com dois andares, a adega com lagar e largos tonéis e a vasta cozinha com forno e lareira no piso térreo, rodeada do palheiro, da pocilga, dum estábulo para as cabritas ou ovelhas. À frente e aos lados, a vinha, uma pequena horta e árvores de fruta, com uns poços e pequenos estanques cheios de rãs a coaxar a coberto do lodo verde e viscoso. Na planície à frente da casa, até ao rio flanqueado por choupos e ulmeiros, um vasto terreno para cultivar milho e feijão de sequeiro. Nas traseiras, um pinhal frondoso a alargar-se pelos montes acima até ao horizonte. À noite, haveria de ouvir à luz das estrelas a cantata dos grilos e das cigarras.
Não era invenção: a imagem veio-me da infância, do que me resta das memórias de há meio século da casa dos meus avós maternos. Procurei ainda, com a ajuda da prima Ilda. Mas nada apareceu que correspondesse à imagem que me ficara da infância. Os preços reflectiam os custos da interioridade. E ficava longe! Quando a distância da viagem aumenta, diminui a duração da permanência, aumentam as despesas de deslocação, reduz-se a frequência das visitas e aumenta o custo da manutenção: triste sobe e desce contabilístico em que, somados os inconvenientes, se vêm sumidos os benefícios.
Alternativas não faltavam desde que, obviamente, não fosse o Ribatejo: planícies extensas com toiros e campinos, toiradas e marialvismo? Nunca na vida!
Acontece que o mano Luís tinha descoberto, na variante da EN 114 que leva do Cartaxo a Rio Maior, lá para uns recônditos cantos do concelho de Santarém, umas antigas vinhas retalhadas por heranças no meio de uns pinhais muito aprazíveis. Encarregou-se de arregimentar uns quantos amigos com pé de meia e lá compraram uns quantos terrenos em que se fixaram. Com o tempo, (prometo que voltarei a este assunto mais tarde) foram implantando as infra-estruturas indispensáveis a um mínimo de comodidades – electrificação, canalização de água, arranjo de caminhos, iluminação, caixas de correio – e lançaram-se na construção das suas próprias moradias.
Bem me aliciou, mas o que vi não me agradou: ou porque o terreno era grande demais, ou demasiado reduzido, ou porque lhe passava em cima uma linha de alta tensão.
Passou-se algum tempo e acho que o Luís já não alimentava grandes esperanças de que alguma vez pudesse vir a interessar-me por Vale de Moinhos, nome que, segundo rezava nos mapas antigos, era dado àquele pedaço de terras. Foi nesse estado de espírito que me falou de um terreno, há muito deixado ao abandono, lá para os limítrofes da zona em questão, e que, estando tão afastado da mão do homem como do pensamento de deus, se tinha convertido num emaranhado novelo de silvas. Anuí. E fui.
”Emaranhado novelo de silvas” não é figura de retórica. Qualquer ponta por onde se lhe pegasse, qualquer rarefacção de matéria que permitisse a passagem de um homem, haveria de o lancetar várias vezes na face, nas mãos, nas pernas, em qualquer parte do corpo menos protegida por vestuário resistente. Aprendi mais tarde que trabalhar ali só de botas, com calças e com luvas de pele de porco, que apesar de extremamente resistentes estariam feitas num fanico em menos de um ano.
À margem do silvedo havia uma estreita nesga de terreno orientada de sul para norte com um capim tão alto que haveria de encobrir qualquer animal, presa ou predador, de África. Em suma, já que tanto obstáculo se interpunha entre o olhar e o objecto a ser visto – o terreno – havia que recorrer, para o ver, ao olhar da imaginação.
É indescritível o que vi. Não sei se o Luís me ouviu balbuciar: “é este!”.
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As histórias muito profundas, com mensagem subtil, e dotadas daquela capacidade para deixar marcas indeléveis no inconsciente docilmente cerúleo das criancinhas, as que ainda são, mais aquelas que já fomos, ocorrem invariavelmente na floresta.
Para sustentar o meu argumento, apresentarei alguns exemplos. Mas, primeiro, vejamos aonde pretendo chegar:
O que é próprio da criança, na sua essência de cria doméstica, é estar em casa (em latim: domui) ou nas suas imediações. Onde começam ou acabam essas imediações é coisa que certamente todas as crianças sabem, embora se julgue, juízo fundado na observação comum, que à medida que o tempo passa essas imediações vão-se afastando progressivamente da casa! A casa é o abrigo, a protecção, o amparo; é também o lar, o fogo, o aconchego; é ainda o interior, o íntimo, o familiar, o conhecido. No jogo das oposições, o exterior é o desabrigado, desprotegido, o à mercê do acaso; é a geada, a escuridão e o desconforto; é o devassado, o desconhecido, o arriscado.
Em todas as histórias há uma criança que se perde (errare humanum est!). E nessas histórias erráticas é, geralmente, na floresta que as crianças se dão conta de estarem perdidas. A floresta por si só é um perigo: basta imaginar todas aquelas árvores com troncos retorcidos, quais caras engelhadas de bruxas velhas (e certamente más! ... "rebola cabacinha, rebola cabação"), com nódulos que se assemelham a olhos esbugalhados. Mas a floresta encobre também outros perigos e sustos: lobos maus e raposas prontos a darem a primeira ferroada na perna tenrinha da criança perdida, cogumelos venenosos, serpentes que hipnotizam com o olhar, corujas agoirentas... Finalmente, a criança perdida encontra o seu porto de salvação novamente numa casa, mas agora implantada no seio da floresta: a casa dos sete anões, a casa da avozinha, a casinha de chocolate, etc.
Prefiro a todas elas a do capuchinho, não só pela diversidade dos ingredientes, como pela sua inverosimilhança.
Cada parte da história é uma história completa, com ensinamentos, moral e tudo:
O capuchinho prepara o lanche para a avó comer (embora, paradoxalmente, seja a avó, no fim da história, que é comida). Imaginam a madrasta da Branca de Neve a preparar a maçã para a afilhada e esta acabar por ser devorada por uma vara de javalis antes que os anões possam acudir em sua defesa?
Por outro lado, o lobo mau é travesti, ou seja, veste-se daquilo que não deve, e faz vingar os seus intentos pela dissimulação, pelo ardil, o que é próprio dos caçadores e assim, pela inversão da comida, pela inversão dos caracteres do género e da espécie e pela inversão dos papéis, a história atinge o auge do seu poder emocionante.
A possibilidade da história, e é isso que nos atrai, advém da sua completa impossibilidade, da impossibilidade que está para além do espelho, e o para além do espelho não é outra coisa senão a floresta.
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Estou sempre a pensar que não se pode conhecer a floresta a não ser por visões.
Quando era pequenino esperava crescer e ter tamanho para ver as coisas. Para mim a floresta era o Monsanto, a mata de S. Domingos, a Serafina, os Montes Claros, a Luneta dos Quartéis.
Fim de semana, geralmente ao Domingo, com farnel e manta de por no chão, era brincar a montar uma cana fantasiando um garboso corcel, ou, o que ia dar no mesmo, ler as idênticas aventuras no Cavaleiro Andante trazido na véspera pelo Sr. Américo juntamente com o Século. Claro que o cheiro concreto da resina dos pinheiros e dos eucaliptos misturava-se, nessa altura, com as cores e os estampidos épicos colhidos na leitura visual dos quadradinhos e que ressoavam epicamente na mente. As cavalgadas e falcoarias continuaram mais tarde nos pinhais do meu avô materno, mais urdidos de fetos e de outra vegetação rasteira - o mato - condimentadas com as narrativas aventureiras de Salgari, Walter Scott e outras leituras menos visuais. A floresta evocava sempre as emoções da aventura, como, nos primeiros campos de férias, a busca nocturna dos gambozinos, com o coração ao pé da boca, esta sempre muda para não dar parte de fraco. Mais tarde ainda, procurava as grandes concentrações arbóreas para, nas clareiras banhadas de luar, fazer as primeiras incursões experimentais no domínio da partilha amorosa: ilhas nos aglomerados urbanos, como a mata de Benfica, o jardim da Estrela, Campo Grande ou Estufa Fria, ou grandes extensões da mata rarefeita nas dunas entre a Trafaria e a Caparica.
Floresta a sério, conheci-a em África. Fui mobilizado para a guerra colonial e atirado para Angola com cento e tal miúdos como eu.
Despejados em Luanda, com o nariz a tresandar a sal e a vomitado, fomos metidos em camionetas e viajámos aturdidos até Nova Lisboa; dali para o Luso apinharam-nos em carruagens de comboio - para que servia afinal as dez reguadas levadas doze anos antes por não saber de cór as estações e apeadeiros da linha Benguela-Luso?
Finalmente no mítico Leste, fomos metidos em viaturas militares e devidamente instruídos pela Companhia que nos escoltava sobre os procedimentos e cuidados a ter em caso de paragem, mina, golpe-de-mão ou flagelação. O cuidado principal era encontrar uma árvore para esconder a cabeça e deixar que a escolta cuidasse das nossas vidinhas.
Tive oportunidade de me familiarizar com diversas árvores africanas na estrada asfaltada que nos conduzia até ao Dala. Retenho ainda os primeiros odores daquela seiva intensa e fogosa, a que se juntaria mais tarde os do capim e das queimadas, e todos os outros da paleta africana. Na ida para lá, a paragem pelo Dala foi de curta duração: uma breve passagem dos oficiais pelo gabinete de Operações e Informações para ver as cartas topográficas espetadas na parede a corresponder em toda a sua latitude à extensa área que era o território do batalhão e, em particular, o polígono da nossa Companhia atravessado de Sul a Norte pela única picada a que em toda a vida pude chamar ´a Picada´, espécie de recta a cair do mapa na perpendicular e claramente definida por dois pontos: Luma Cassai e Alto Chicapa.
Entrámos na picada e afundámo-nos no mato. A floresta veio de novo ter comigo. Não tínhamos andado muito, com sorte circulava-se a trinta à hora, quando lobrigo a meio caminho entre a picada e o horizonte uma séria de construções exóticas, uma espécie de templos de pedra a resplandescerem de oiro no interior da selva; passados uns instantes, aconteceu o efeito maravilhoso de ver vários elefantes vistosamente ornados que transportavam palanquins em cujo interior balanceavam estranhas personagens com uns turbantes engraçados.
Das muitas imagens que vi pouco recordo, mas resta-me de tão esfumada memória a crença de que vi lá aquilo que, atendo-nos os factos pelo que valem num plano racional, não devia lá estar.