- Detalhes
Uma semana em cheio, ali, em acometido corpo a corpo com a terra.
Aos poucos vão resvalando para fora da cabeça os objectos da consciência. E a própria consciência que de si mesma é consciência é como uma placenta que descolou. E o cérebro fica como uma casa desabitada.
Pelo contrário, os músculos retesam, retesam e distendem. A azáfama é múltipla e diversa: afagar a terra, penetrá-la, alimentá-la de composto, abandonar a semente e revolver de novo a terra; mas antes, a monda, a remoção das ervas daninhas, uma a uma com a gentileza sabedora dos dedos, ou a granel com a rudeza da pá ou do sacho; depois, é necessário cuidar da rega, estirar o tubo negro de 16 polegadas de modo a fazer chegar ao ponto desejado um aspersor ou um gotejador. É tudo trabalho de mãos, que calejam, ficam ásperas e são golpeadas.
Ao fim do dia o único pensamento que habita o corpo é uma imensa dor. O sono vem a meio de qualquer coisa e só se interrompe com a chegada dos primeiros raios de luz matinal.
O dia que vem depois soma-se ao anterior e cresce a beleza dos canteiros e a extensão da dor.
Passa a semana repetindo-se diariamente a via sacra. A dor instalada não é ainda a morte nem a descida aos infernos. Por isso vem o domingo da Páscoa e não há ressurreição e subida aos céus. Movimentos verticais são para os deuses que morrem e renascem. Quem pertence às planuras da condição humana, e mantém essa condição em exclusividade, contorce o corpo na horizontal, aconchegando as vértebras, os rins, os pulsos, os tornozelos.
Uma semana em cheio e segue-lhe o regresso. O regresso ao asfalto, ao betão, ao ar quente e pesado, à claustrofobia da casa de cidade, ao escritório, à rotina dos dias cinzentos, cinzentos como os fatos que se enverga, e asfixiantes, como são asfixiantes as gravatas com nó ao pescoço com que simbolizamos a escravidão.
- Detalhes
A maior parte da massa do Universo, provavelmente 90%, é constituída por uma matéria sem luz, de natureza desconhecida, a que se deu o nome de matéria escura. Deduz-se a sua existência da análise das curvas de rotação das galáxias. Deduz-se, mas não se detecta. Sendo destituída de luz - daí a designação de "escura" - não pode obviamente estimular os sensores do nervo óptico. Se a cegueira impede um invisual de ver a matéria comum, a totalidade do ser humano é completamente cega para nove décimos do universo.
Para compensar, vemos deuses e quimeras em toda a parte. E com os olhos postos no firmamento aguardamos todas as noites pelo aparecimento de uma estrela nova que anuncie para a madrugada do dia seguinte o nascimento de um salvador. Neste cantinho à beira-mar plantado há-de vir numa manhã de nevoeiro.
Não será o primeiro nem o último. Eles andam para aí. Como vêm das zonas escuras do universo não damos por eles.
- Detalhes
in O Tremontelo
Andava, não sei se a mondar, não sei se a ceifar - porque a ceifa, dizem, é de cereais e a monda, de ervas daninhas - quando ouvi um tonitroante coaxar. Não me pareceu vir daquela coisa verde de cerâmica que trouxera do Palais de la Découverte, com painel solar às costas e voz de rã de falsete ao passar-lhe um corpo móvel pelas beiças. Apresentava uma claridade sonora comparável à da imagem visual de muito alta definição. Era também de uma agudeza acústica tão fina como um florete de luz fria a trespassar o corpo. Fui ao lago ver. Nada.
Seria, fora de quaisquer dúvidas, uma daquelas miragens acústicas que exprimem o desejo de comunhão das almas solitárias. De gadanha nas mãos fazia-me às ervas uns passos à frente. Dizem que para a frente é que é Lisboa, não sei porquê, reconheço que não sei mesmo porquê, e nem adivinho porquê Lisboa. É um objectivo, uma visão que nos norteia (mas se estou a norte de Lisboa porque não hei-de então estar a norte de todos os meus objectivos como Afonso filho de Henrique quando virou costas à mãe e foi espadeirar a mourama?). É que a coisa está mesmo no andar para a frente e não olhar para trás, como a mulher de Lot. Persistir no esforço e na disciplina do querer e só olhar para admirar a breves trechos a transformação operada pelo nosso acto, seja tranformar a selva num jardim, seja outro acto heroico clandestino do nosso quotidiano.
Estas coisas vai a gente pensando, quando a tarefa é árdua e longa. Os pensamentos são o ópio e o lenitivo da fadiga dos músculos e dos ossos. O tempo não é a medida da acção que passa, é o encurtamento da distância. Vais na A1 para o Cartaxo e pensas: faltam 20 Km, faltam 10 Km... Viras à direita e estás quase na portagem. Depois tomas a estrada para Almoster (Al Monasterium), um dia voltarás para ver o mosteiro e deixares-te intoxicar daquela neblina medieval que o rodeia.
Estamos nisto, a pensar as ervas com os braços, a mondar o tempo com a mente, e o coaxeio irrompe de novo criando todo um grandioso silêncio à sua volta para se evidenciar.
Ele há rã.
E ao fim de mais três tentativas, havia. Imponente, expunha-se ao sol em cima de uma folha de nenúfar. Espreitei-a de todos os lados do lago, ora furtiva, ora ruidosamente. E ela ali estava pespegada indiferente aos meus desconjuntados arremedos de truão.
"Fica-te aí", disse-lhe, dirigindo-lhe o pensamento.
E lá fui a correr para casa à procura da minha Nikon digital. E regressei a correr directo ao lago testando as pilhas, a objectiva, a posição do selector. Lá estava ela, castanha sentada em verde, postada em atitude hierática como a esfinge do Nilo. Pareceu-me ter feito um breve sorriso quando disparei o flash. Continuou imóvel, rodando apenas os olhos, em pose de modelo.
Passados instantes (o instante é a eternidade misturando-se no tempo) conversámos.
- Detalhes
in Neste Lugar
A pré-ocupação gera o cuidado (cura) e este devém inquietação, necessidade de saber e inspecção diligente, o curius.
Como já afirmei, o fito da exploração é conduzir-nos à disponibilização de novos lugares. O tema de hoje - a curiosidade - pretende desvelar o mecanismo que nos move à exploração e desmontar a sua arquitectura para compreender o seu funcionamento e eficácia.
Quando se avalia, globalmente, o rendimento intelectual de uma criança, medido em termos de desvio em relação a um padrão etário de desempenho, tem-se em conta a extensão do vocabulário que ela compreende e é capaz de definir verbalmente. É um excelente indicador do nível da sua curiosidade e, indirectamente, um preditor do desempenho de que ela é capaz. Não se pode usar este protocolo com um gato jovem pela razão de que um gato não fala. Mas, como todos sabemos, há outros recursos para entrar em comunicação, quer com os gatos, quer como bebés de tenra idade infantes. De um lado, os recursos tecnológicos verdadeiramente simples de que as ciências do comportamento proveram os investigadores; do outro, os recursos poéticos com os quais, desde a sua alvorada, a humanidade tem comunicado com os bebés, os gatos e os demais entes que partilham a nossa companhia.
Dizer que os gatos são curiosos é um truísmo. Se os gatos pertencem de iure àquele lugar que designamos de humanidade, tal se deve, mas não exclusivamente, à complexidade da sua curiosidade. Gatos e homens irmanam num elevado grau de curiosidade.
A observação mais descuidada põe a curiosidade dos gatos bem no centro, em plena zona focal, da nossa atenção. Na quarta-feira passada andava a arrumar à pressa o meu lugar no Cartaxo para vir passar descansadamente o resto da semana ao meu lugar em Lisboa. Tinha acabado de lavar a loiça do almoço e estava a passar o chão da cozinha com a esfregona. Naturalmente, tinha a porta da cozinha, que dá para o jardim da entrada, aberta. Os gatos mais novos rebolavam-se na areia enovelando-se uns nos outros e interrompiam os seus jogos de cabra-cega e de escondidas para se amandarem de sopetão e em voo rasante sobre os mais velhos que imperturbavelmente esfingeavam solenemente na areia quente do jardim. O Mião postou-se na soleira da porta e, de lá, seguia todos os meus movimentos com os olhos e a cabeça. Exagerei o trajecto e o movimento da esfregona ao que ele correspondeu com o exagero do olhar. Se parava a esfregona, parava a cabeça dele e só movia o olhar para o balde seguindo atentamente o meu esforço para torcer a esfregona. A alturas tantas, passei a limpar a área adjacente à porta da cozinha e o Mião, adivinhando o percurso iminente da esfregona, esticou-se, ostentando um ar incomodado, e, lentamente, saiu porta fora ficando na rua a monitorizar a minha ocupação. Assim que ultrapassei a zona da porta voltou de novo ao seu local habitual de atalaia e continuou a inspeccionar-me diligentemente. Pressenti atrás dele o Bolinha e o Ratito a perscrutarem com os seus olhos esbugalhados tudo em que consiste a cozinha com os seus espaços, o seu mobiliário e equipamento e os infindáveis tarecos que povoam aquele inconfundível lugar humano.
Com o chão da cozinha a mostrar um aspecto muito razoável, e começando a água do balde a ganhar as cores indefinidas da sujidade, decidi aproveitá-la, enquanto possível, para lavar a tijoleira do pequeno alpendre da porta da entrada. Procedi às operações, despejei a água já num estado inconveniente, e dei a volta à casa para entrar pela porta da cozinha. O Mião, ao ver-me, deu às de vila diogo. Entrei e fechei a porta.
Não passara ainda o tempo de dizer um ai quando ouvi dois miados angustiados: eram o Bolinha e o Ratito que tinham ficado enclausurados dentro de casa. Para os leitores que ainda não provaram muita intimidade com os meus gatos, devo esclarecê-los que estes bichos só viram como tecto, em toda a sua curta vida, o céu azul e a barriga bojuda do tanque de lavar roupa adornado nas traseiras do "Anexo". Os pelos todos em pé, as gargantas estridentes, o susto estampado no rosto, os coraçõezitos a badalar desesperadamente nos peitos peludos, aqueles gatos metiam dó. Tentei pegar neles mas só piorei a situação. A tentar fugir-me, escorregavam de pernas abertas sobre a tijoleira ainda molhada parecendo aprendizes muito incipientes de patinagem no gelo com os patins a fugir para os lados opostos. Ao fim de algum tempo, depois de ter o discernimento de lhes abrir a porta da cozinha, fugiram parecendo que levavam o demónio atado nos rabos.
Continuei ainda uns tempos a minha azáfama de pôr em ordem a casa. Ao vir do banho para o salão pressenti uns sons meio abafados a que não dei grande importância mas que me forçou a convergir o olhar para baixo do móvel da televisão. No escuro, quatro olhos intensos fixavam os meus movimentos.
- Detalhes
A televisão é uma caixinha de prodígios: encontra-se de tudo e nada é como na vida. Como tem a virtude de congelar no tempo, e de misturar, uma imensidão de imagens sacadas em diferentes correntes temporais, permite-se apresentar-nos em sequência um rosário de notícias desconexas deixando-nos com a obrigação de tirar daí o sentido como se tratasse de interpretar uma mensagem cifrada ou um oráculo.
Note-se que "rosário de notícias" é mais do que uma metáfora pires, é uma expressão deliberada; pois, se um rosário é uma fiada de rosas, as notícias, como as rosas, ou as demais flores, aparecem sempre iguais a si mesmas na mesmíssima altura do ano. À pergunta "o que trazeis de novo no vosso regaço?" só pode ser dada, por conveniência da proposição à realidade verificável, a seguinte resposta: "são rosas, senhor!".
Rosário de notícias é também uma expressão apropriada para esta época de Maio: é o mês das rosas e do rosário de Fátima.
Ouvi os noticiários de ontem com o mesmo enfado de sempre. O caso da Madeleine já deu o que tinha a dar e, para profunda insatisfação do masoquismo nacional, o fluxo migratório sazonal dos ingleses para o Algarve afinal não vai estancar, e nele se vão continuar a incluir reformados, desempregados, criancinhas loiras, pedófilos e pais abandónicos. Não dei conta que tivessem caído aviões, ou que Gaia tivesse posto os elementos em fúria. Os mortos no Iraque continuam a situar-se na casa das dezenas, e os feridos nas centenas, e a missão dos soldados portugueses no Afeganistão continua inalterada, debaixo do capacete da NATO que, por sua vez, está debaixo do chapéu da ONU. Fiquei vagamente a saber que só no futuro talvez distante teremos a confirmação do saldo real da actuação de Tony Blair. Lisboa continua a ser uma cidade branca e repleta de turistas. No paço da cidade não é a rainha que brinca ao esconde-esconde com os cortesãos; joga-se ao deita-abaixo e ao corta-cabeças, e cada um espreita a sua oportunidade de ir a jogo o melhor que pode.
Nada disto me deu pistas para descortinar qualquer desígnio escondido por detrás de cada "rosa".
No meu afã de pesquisar a verdade – não sendo a verdade outra coisa que o desvendar o que antes fora vendado, como sugere a palavra "alêtheia" no falar dizente dos antigos gregos – duas "rosas" me prenderam a atenção, uma pela suavidade da textura e do odor, outra pela agressividade dos espinhos.
Em Fátima, Altar do Mundo, uma peregrina é entrevistada pelo repórter de uma estação nacional. (Digo "pelo" dada a ausência do neutro como atributo morfológico da língua portuguesa, o que se aplicaria a matar a este tipo de profissionais de segunda gema, sem qualquer recorte de sexo ou de género, quer na apresentação pessoal, quer na maneira de questionar os entrevistados. Também são irrelevantes as perguntas mastigadas à pressa, pré-preparadas na escola do fastfood televisivo. Importante é aparecer o mais centrado possível na pequena caixa mágica, sendo as palavras uma espécie de música de fundo ao vivo, mas um luxo caro a usar com parcimónia). Que vem então a responder a peregrina? Que sim, que tinha uma grande devoção, uma grande fé, um grande amor pela virgem, e por todos os anjos, e por todos os santos. A religiosidade popular é a partilha de um sentimento que adere a verdades simples: o culto é a veneração e os seus objectos são a Senhora, os anjos e os santinhos. Uma mistura de panteísmo matriarcal (será ainda o culto de Gaia?) e de politeísmo primevo, meio pragmático, meio feérico.
Do outro lado do mar, Bento XVI e os seus mosqueteiros intensificam os preparativos para a cruzada do século. Aquém, com o antigo secretário de Estado do Vaticano, cardeal Ângelo Sodano, e além-mar, com o antigo teólogo Ratzinger, hoje papa, intentam atrair para a fé ("sem proselitismo", imagine-se!) os crentes desviados, denunciam a nova apostasia (“Nos nossos países, está em curso uma apostasia sub-reptícia que não pode deixar-nos indiferentes”, e exigem o público reconhecimento dos "contributos" do cristianismo para a construção da Civilização Ocidental e da Europa “tentada a esquecer aquela fé que fez a sua força no decorrer dos séculos”.
Recordemos então alguns factos históricos de “aquela fé que fez a sua força no decorrer dos séculos”:
- Código de Justiniano contra os heréticos (529)
- Cruzadas: séculos XI a XIII
- Bula de Lúcio III Ad abolendam (1184)
- Cruzada albigense (cátaros, waldensianos e templários): Séculos XII e XIII
- Massacre pelos cruzados de 20000 pessoas em Beziers (1209)
- Inquisitio Haereticae Pravitatis Sanctum Officium (1227)
- Judeus e mouros: século XV
- Malleus Maleficarum, ou "martelo das feiticeiras", de 1486.
- Massacre de Lisboa de 1506 (ou a matança da Páscoa de 1506), uma multidão movida pelo fanatismo religioso perseguiu, violou, torturou e matou entre duas mil a quatro mil pessoas, por serem judias.
- Reabilitação da Congregação da Inquisição ou Santo Ofício (1542)
- Index auctoreum et librorum prohibitorum (1559)
- Caça às bruxas: séculos XVI a XVII
- Guerra dos 30 anos: século XVII