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Um dia deixei de ver a História como um lugar decorrem os acontecimentos e cujo horizonte é o infinito. Para isso, bastou um afastamento para África durante um pouco mais de dois anos e uma estranha melodia no regresso. Uma época é qualquer coisa como uma configuração, como um puzzle que perdura estável até que um pequeno estremeção o desconfigura ou reduz a fragmentos dando o lugar a uma nova configuração. Percebi mais tarde que esta nova configuração já lá estava, só que era invisível. É que, olhando para trás, conseguimos prever o passado: estava lá tudo, só que não o sabíamos.
Os anos sessenta foram anos de promessas quase até ao fim do século: Maio de 68; Queda dos regimes autoritários e a sua substituição por democracias liberais, como a Revolução dos Cravos e o fim do franquismo; independência das colónias; desenvolvimento científico e tecnológico; educação generalizada; melhoria das condições de vida da população. Enquanto isto se passava nos países do norte, na América Latina andava tudo às avessas: ditaduras em Cuba (1961), no Equador(1963), no Brasil (1964), na Bolívia (1964), no Chile (1973), no Uruguai (1973), na Argentina (1976)
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Um dos argumentos mais canhestros que podemos esgrimir para desbaratar qualquer pensamento de que discordamos consiste em proclamar que o nosso oponente só está a ver as árvores e não consegue topar a floresta. O oponente, chamemos-lhe um arborino, prende-se a pequenas minudências, perde-se no detalhe e só consegue lobrigar o todo ao cabo de um interminável e insano esforço para reunir as peças separadas. Do outro lado, o florestino, digamos, estipula a floresta num estalar de dedos sem quase olhar para as árvores.
Para clarificar este diferendo, começarei por convocar a vossa atenção para uma diferença ontológica fundamental: enquanto o discorrer sobre as árvores se refere a entidades reais que percepcionamos no mundo material através do nosso corpo, falar de uma floresta é enunciar um conceito apenas realizado nas nossas mentes ou, quando muito, pronunciar o nome de um lugar. Dá para ver, após os incêndios, que as florestas não passam muitas vezes de lugares calcinados, com a cor cinzenta da cinza, sinistramente áridos como os desertos. A floresta lá está, embora as árvores se tenham ido.
Esta mania de calcar um oponente, acusando-o duplamente de só olhar para a realidade do mundo material e de não dar a primazia às entidades verbais do mundo conceptual, domina o panorâma intelectual do homem moderno, dito sapiens. Este universo antrópico abomina o individual, o detalhe, a parte, o pedaço. Admira e envaidece-se com a generalidade, a banalidade, o fútil. Tal tradição de pensamento insere-se na pesada herança do platonismo e posteriores abortos, em que o geral é mais real do que o particular, e o verbo se faz carne para que esta venha a ser flagelada e crucificada no calvário da história e justificar toda a pulhice humana. É agravada pelo cogito cartesiano em que o mundo físico é renegado através da dúvida, procedimento metódico para consagrar o solipsismo do sujeito consciente no panteão do ser.
Ver a floresta, orgulham-se os florestinos. Mas que floresta? A floresta do explorador ou a do passeante? A floresta do silvicultor ou a do madeireiro? A floresta do pirómano ou a do bombeiro? Cada um vê a floresta à sua maneira de acordo com o seu ângulo de observação e os seus interesses pessoais. A floresta que é um todo e que está para além das árvores não existe.
O processo arborino de conhecimento e de comunicação, tipicamente bottom-up, é muito útil para pôr de pé configurações dinâmicas da realidade, mas pode ser exasperantemente enfadonho e esgotante, sobretudo se o arborino não for capaz de pôr um travão à necessidade mental de exaurir os detalhes.
Graças à Internet, vivemos numa era de comunicação multilateral capaz de criar imensas sociedades virtuais com laços de muitos para muitos. Assim é também para as árvores. As verdadeiras florestas não são abstrações das árvores. São, pelo contrário, redes de intercomunicação entre elas, delas com as outras plantas, com os fungos, as bactérias e os animais.
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Na desconsideração que os florestinos têm pelos arborinos sobressai arrogância e uma elevada consideração que aqueles têm por si mesmos. Consideram-se exemplares típicos do género humano. Digo género, e não espécie, para ir ao encontro da sua aspiração à generalização e à abstracção, sabendo, embora, que generalizações e abstracções não digam respeito a qualquer coisa de real. Mas eles gostam dessa vida de faz de conta: sendo a floresta a solução para o problema das árvores, rapidamente passam de uma floresta para outra no meio de muito champanhe e alarido pois a vida é breve e o que é importante é deitar os problemas para debaixo do tapete e curtir.
A floresta para um arborino é o lugar onde ele prefere viver e relacionar-se com as árvores, ou melhor com cada árvore. O florestino vive e gosta de viver na grande urbe, onde as árvores se confundem com os postes de iluminação pública e a floresta é uma mancha fugidia que se vê de raspão nas autoestradas que lhe rasgam o ventre. O arborino é atípico, divergente e, aos olhos de muitos florestinos, parece excêntrico. O florestino é típico, o exemplar da espécie, embora haja uns típicos que são mais típicos do que os outros. O florestino acredita que típicos e atípicos são um género único - a humanidade. Pelo contrário, os arborinos preferem pensar que são espécies distintas e que cada espécie comporta um sem número de variedades, múltiplas humanidades constituídas por seres humanos de carne e osso. O florestino acredita que tem no seu cérebro uma teoria do outro e que, por via disso, possui a capacidade de entrar na cabeça do outro. Mas não consegue entrar na cabeça de um arborino que tende a considerar uma anormalidade. O florestino joga com as palavras e usa-as para o engôdo e o logro. O arborino suavisa a percepção da realidade.
Diz-nos a ciência que o género Homo não é constituído exclusivamente, ao longo do processo evolucionário, pela espécie Homo sapiens ou homem moderno. Embora desaparecidos, coexistiram com o sapiens, os Denisovanos e os Neanderthais, entre outros. Sabe-se também que houve interações entre estes e os sapiens de que resultaram cruzamentos e hibridações a tal ponto que ainda subsistem genes neanderthais no genoma do homem moderno. Mas, o meu ponto não é esse. A actual espécie humana não é una, mistura dentro de si duas linhagens com marcantes diferenças genéricas capazes de promover desenvolvimentos cerebrais e, consequentemente, cognitivos, sensoriais e emocionais divergentes. E essas linhagens são o sapiens subsp. arborino e o sapiens subsp. florestino.
Ora, alinhando com a linguagem dos florestinos, poder-se-á falar do transtorno do espectro arborino e do transtorno do espectro florestino. Talvez assim, não a humanidade, mas os seres humanos se entendessem melhor e a vida fosse menos trágica (os bodes que me desculpem se acharem que não são para aqui chamados).
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Falemos agora do Transtorno do Espectro Florestino (TEF). Ficaremos hoje pelo primeiro sinal que é o não terem uma sensibilidade (sensorialidade) muito apurada.
As florestinas e o florestinos encharcam-se de perfume, carregam cores vistosas nos lábios e nas faces, podam artificiosamente as pilosidades da cabeça e do corpo de modo a parecerem jardins de buxo neo-clássicos, experimentam vestir-se de maneiras diferentes, quer no talhe, quer no comprimento, quer nas cores e nos padrões. O corpo de um florestino é um objecto público destinado a atrair, seduzir, fazer-se notado, numa sociedade em que o valor da vida se mede pela notoriedade. Como nas manadas, são apostas ao corpo marcas como tatuagens e piercings: o corpo não se queixa e a sociedade Big Brother assim o obriga. A moda e a publicidade são fenómenos tipicamente florestinos. De uma sensibilidade pouco apurada resulta uma memória efémera. Daí a insistente necessidade de mudar e comunicar. A vida de um florestino é uma permanente tagarelagem, um constante rodopio, uma viagem incessante. A natureza é que as paga mas essa contabilidade ainda não está feita.
As florestinas e o florestinos encharcam-se de álcool e outras substâncias que alteram os estados mentais. Embora alguns se vejam forçados a estimularem-se em privado, a maioria prefere fazê-lo em festas ruidosas apinhadas de gente. Ninguém ouve ninguém, tal é o alarido e a sonoridade metálica do ambiente. Tudo é oportunidade para festejos e comezainas: aniversários, baptizados, casamentos, funerais, festas religiosas e civis, férias, fins de semana, noitadas.
Têm uma particular necessidade de estimulação luminosa, daí procurarem ambientes escaldantes e de elevada luminosidade como as praias, de preferência a sul. Com um limiar de estimulação muito elevado, não lhes incomoda calcarem seixos ou sentir a areia a entranhar-se nos dedos dos pés. Para tornar a noite ou a escuridão iguais ao dia, e prolongar a sua quase desesperada necessidade de estimulação, sobrecarregam os ambientes de iluminação artificial que não os incomoda, nem provoca tonturas, vertigens ou enjoos. São adeptos ferverosos do cinema, da televisão, dos ecrãs de computador, dos tablets e dos smartphones, já para não falar dos pequenos ecrãs embutidos em tudo o que é aparelhagem doméstica, automóveis, caixas bancárias automáticas, máquinas de vending e reclames.
A pele de um florestino não difere muito de uma gabardina ou de um capote da tropa. É tão pouco sensível que precisa de estar constantemente a ser estimulada por carícias e afagos, motivo para juntar dois ou mais florestinos em rituais erógenos. Quando a necessidade aumenta, o florestino afaga-se sozinho. A propósito de vestuário, qualquer tecido lhe serve e não distinguem a aspereza da lã da subtileza da seda. As etiquetas não a incomendam. Ele nem as sente.
Parece que a vida nesta terra não lhes chega, que já não há mais nada para mudar ou mais sítios para onde se mudar, e que decidiram viajar para lugares virtuais. E fazem-no a expensas da internet vivendo em sites manhosos e nas redes virtuais. A vida de um florestino nas redes virtuais é uma permanente tagarelagem, um constante rodopio, uma viagem incessante. A realidade natural é ultrapassada pela virtualidade e esquecida. Daí que quando o florestino olha para as árvores não as veja. A sua visão apenas lhe devolve uma mácula verde-leitosa que ele chama de floresta.
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Em contrapartida, o Transtorno do Espectro Arborino (TEA) apresenta uma extra-sensibilidade (sensorialidade) apurada em excesso.
As arborinas e os arborinos incomodam-se com os ambientes carregados de odores de qualquer tipo, abstêm-se geralmente de qualquer tipo de decoração facial ou capilar, tendem a desmazelar o cabelo e as outras pilosidades corporais, vestem-se de maneira descuidada e simplificada, indiferentes ao talhe, ao comprimento, às cores e aos padrões, mas não indiferente às texturas. O corpo de um florestino é um objecto recatado, preservado do olhar dos outros e indiferente à pressão dos códigos sociais e aos ditames da moda. De uma sensibilidade muito apurada, em que quelquer excesso lhes pode provocar desconforto e dor física, resulta uma memória duradoira. Esta memória dilatada promove um sentimento de urgência e medidas para protecção das ameaças. Daí a insistente necessidade de preservar nos hábitos e criar defesas face à sobreestimulação ambiental, particularmente a de natureza social. A vida de uma arborina é uma procura permanente de silêncio, de odores ténues e de texturas suavizadas, uma atenção permanente ao detalhe, uma constante e metódica repetição de gestos. Tem por ideal a vida monástica e por refúgio a natureza.
Os arborinos e as arborinas, embora possam também ceder ao uso de bebidas alcoólicas ou de outras substâncias capazes de alterar os estados mentais, receiam experimentá-los e, se o fazem, evitam que tal ocorra em ambientes de socialização, evitando participar em festas apinhadas de gente, ruidosas, cintilantes e cheias de odores corporais. O alarido e a sonoridade elevada do ambiente incomoda fisicamente o arborino de impede-o de se concentrar na interacção com os outros. Se puder escapar, a arborina vai tentar subtrair a sua presença em aniversários, baptizados, casamentos, funerais, festas religiosas e civis, férias, fins de semana, noitadas. Com um baixo limiar de estimulação, incomoda-lhes calcar seixos ou sentir a areia a entranhar-se nos dedos dos pés, razão por que evitam a praia, sobretudo às horas de sol. A noite ou os lugares sombreados, ou pouco iluminados, garantem a protecção dos excessos luminosos, sobretudo da iluminação artificial que os incomoda, lhes provoca tonturas, vertigens ou enjoos. Acampar e pernoitar na floresta ou na montanha são ocupações predilectas dos arborinos. |
A pele de uma arborina reage com desconforto ao excesso de estimulação por carícias e afagos e aos abraços efusivos, evitando-os com rudeza quando se sente ameaçada. O arborino pode aparentar ser insensível às abordagens eróticas, mas fica magoado quando acha que o seu comportamento é mal interpretado. Não é só ao toque do outro que rege defensivamente. O vestuário e a roupa da cama têm que ser rigorosamente seleccionados, pois não lhe serve qualquer tecido, dependendo da textura, do peso e da reação epidérmica que lhe causa. Incomodam-lhe as etiquetas da roupa, que ele elimina antes de vestir pela primeira vez.
A vida é para ser vivida na materialidade desta terra e no lugar onde se está e que se aprendeu e continua a aprender com esforço a conhecer as ameaças e os refúgios. As viagens e mudanças são desnecessárias e incómodas. O arborino não percorre os caminhos que cruzam a floresta nem a contorna para a conhecer enquanto tal. Está familiarizado com cada árvore ou arbusto do lugar que habita. A floresta é algo em que se entra e a pessoa se perde nas veredas que vão dar a parte nenhuma.