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Madrid, 10 de Maio.
Os objectos do lobby do hotel estão dispostos como adereços num palco de teatro. Domina aquele cheiro enjoativo que é o default da cozinha espanhola. Ouvem-se vozes vindas de todos os cantos, gritados, como um tagarelar cantado, com trechos parecidos com o português falado por gente com graves lesões espalhadas pelo aparelho fonatório. Estou incómodo na minha posição. Doem-me as costas e o rabo. Por baixo da carne assada, esmagada contra a superficie do sofá, os ossos gritam, revoltados e doridos. Entretanto, chega a Graça.
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Um mês depois, escrevinhado no Tremontelo.
Levou tempo,nessa altura, até o médico se lembrar de me mandar fazer analises. Os resultados revelaram uma anemia monstruosa, para não dizer, cruzes canhoto!, de caixão à cova. O primeiro ferro tomado por via oral teve resúltados imediatos ao nivel da disposição. Entretanto, lá consegui a consulta de proctologia. Fui submetido a um tratamento que, ao fim de uns tempos, se revelou infrutífero. Os níveis de anemia aumentaram e comecei a tomar ferro por via endovenosa. Andei semanas a caminhar para o Hospital.
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No hospital participei em combates de duas guerras: a da comunicação social, à noite, debaixo dos lençois; e a da alimentação, durante todo o dia, às escâncaras.
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Quando era pequeno e usava calções, passava longas temporadas na sala da casa dos meus pais, que dava para a rua. De Inverno, esmagava o nariz na vidraça da janela e espreitava através dos quintais que separavam a casa do Mendonça da casa do Aleixo a nesga de verde do Monsanto que se alcandorava até ao Presídio e que contrastava com a cinza parda e muda da rua. No Verão, era o contrário, a rua enchia-se de cores, de movimentos e de ruídos, o coração acelerava e perdia a vontade de estar ali. Nas estações equinociais espreitava o azul do céu e algumas núvens que por ali se perdiam e coisas estranhas se passavam na moleirinha como então se dizia. Houve uma altura em que tentara imaginar um ponto no espaço, o mais distante que pudesse localizar, e pensava se o mundo acabaria ali. Tornou-se-me evidente que por detrás desse ponto haveria sempre outro ponto, e outro por detrás deste, e que era impossível imaginar onde acabaria esta procissão de pontos. Tinha acabado de forjar o conceito de infinito e fiquei tão exaltado com isso que, nos dias seguintes, ia sempre à janela espreitar o infinito. Foi assim que cedo ganhei alguma familiaridade com conceitos majestáticos que sempre me ajudaram a configurar a finitude e a fugacidade da vida.
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O mundo não pára de dar voltas e, com ele, as nossas cabeças ... que andam à nora.
Enquanto não nos afastamos do habitual, não percebemos as suas lentas mudanças. Geralmente, andamos confiantes no nosso mundo e acreditamos que o nosso mundo nos é fiel. As nossas divagações sobre os lugares, o espaço, o tempo, as coisas, os outros e nós próprios são certezas. Esperamos que o mundo se cumpra como deve ser.