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Passam hoje 400 dias desde que submeti o meu último postal. E o que tenho para trazer aqui é tanto que não caberia no tempo e no espaço de uma carta, ou sequer de um postal. Pela sua complexidade, o assunto seria uma larga colecção de assuntos e o processo de redacção seria uma longa e fatigante viagem, longa e fastidiosa para o leitor também, à moda do turismo moderno em que se esgotam os objectos turísticos em ansiosas caminhadas apressadas e atabalhoadas, em disparos das objectivas e em envios de disparates ridículos para os ditos "amigos" das ditas "redes sociais". Ora, como a melhor maneira de viajar é dar apenas os passos ajustados à nossa condição física e mental e de modo a que nos proporcionem viver e respirar os lugares por onde passamos, assim será também este postal.
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(...) Irei começar pelo tema confinamento. Trata-se, é claro, do confinamento ditado pelas pandemias: A do COVID, certamente, mas também aquela outra pela provocada por outros virus, igualmente transmitidos em exclusivo de ser humano para ser humano, e para a qual tenho vindo a alertar desde há largos anos. Não se tratou de um confinamento apenas entendido como o cerrar as portas e as janelas que separam do meio social exterior, mas de um confinamento que agravou a minha condição de autista, muito rara e nunca descrita nos manuais e nos artigos científicos, conduzindo-me a uma situação quase de locked-in (encarceramento no interior da mente). O confinamento teve ainda uma dimensão física: fiquei limitado pela cerca do Sítio do Tremontelo de onde saí uma dúzia de vezes em mais de um ano. Aqui aprofundei a ligação ao lugar esforçando-me por abandonar a condição animal e viver a experiência vegetal do enraizamento no solo, o que me trouxe alguns problemas de saúde como ter apanhado fungos nos dedos dos pés. Os telefonemas e as mensagens foram banidos e o círculo de contactos reduzido a meia dúzia de familiares e vizinhos e a alguns prestadores de serviços variados, incluindo transportadores à porta. (...)
Do último postal
Confinar (do latim cum + fine) : andar perto do fim.
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A tendência normal de quem se encontra numa situação de clausura é deixar tudo para amanhã. A actividade começa a tornar-se fastidiosa e o tempo parece que sobra.
Os latinos tinham uma outra palavra para designar o que hoje nós, os neolatinos, chamamos em português de amanhã (mañana, em castelhano; l’endemà, em catalão; deman, em occitano; demain, em francês; domani em italiano; mâine, em romeno, etc.). Essa palavra era: cras. Não conheço, mas invejo quem conhece, a história de como desapareceu o termo. Das duas, uma: ou pertencia ao léxico do sermo eruditus, a maneira distinta de falar das elites romanas cultas, e, por isso, nunca desceu aos hábitos de fala das classes populares ou dos povos romanizados; ou entrou em desuso, sendo substituída por uma expressão catacrética, qualquer coisa como "na próxima hora matina".
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Olho para os rascunhos dos vários postais que prometi escrever, uns mal alinhavados, outros demasiado desenvolvidos, todos de uma chateza de desesperar, e decido-me a dar um olá ao mundo para dizer que estou vivo, e para eu próprio acreditar que estou vivo, sendo o estar vivo a única coisa que resta de valor, com o planeta como o conhecíamos a ruir e as relações entre os humanos a pautarem-se pela extrema exploração, saque e dominação como nunca visto antes, com o desplante, a soberba e a maré de ódio a transbordarem no retorno do fascismo, do populismo e do terror divino travestido de artifícios tecnológicos auto-declarados inteligentes.