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Passam hoje 400 dias desde que submeti o meu último postal. E o que tenho para trazer aqui é tanto que não caberia no tempo e no espaço de uma carta, ou sequer de um postal. Pela sua complexidade, o assunto seria uma larga colecção de assuntos e o processo de redacção seria uma longa e fatigante viagem, longa e fastidiosa para o leitor também, à moda do turismo moderno em que se esgotam os objectos turísticos em ansiosas caminhadas apressadas e atabalhoadas, em disparos das objectivas e em envios de disparates ridículos para os ditos "amigos" das ditas "redes sociais". Ora, como a melhor maneira de viajar é dar apenas os passos ajustados à nossa condição física e mental e de modo a que nos proporcionem viver e respirar os lugares por onde passamos, assim será também este postal.
E ao leitor que me queira acompanhar nesta viagem recomendo que não ande demasiado apressado e acerte os seus passos com os meus. Os primeiros passos devem dar sempre uma indicação do sentido que vamos tomar na viagem. É o que farei agora, revelando os temas e assuntos que a este propósito irei abordar nos postais que se seguirão.
Irei começar pelo tema confinamento. Trata-se, é claro, do confinamento ditado pelas pandemias: A do COVID, certamente, mas também aquela outra pela provocada por outros virus, igualmente transmitidos em exclusivo de ser humano para ser humano, e para a qual tenho vindo a alertar desde há largos anos. Não se tratou de um confinamento apenas entendido como o cerrar as portas e as janelas que separam do meio social exterior, mas de um confinamento que agravou a minha condição de autista, muito rara e nunca descrita nos manuais e nos artigos científicos, conduzindo-me a uma situação quase de locked-in (encarceramento no interior da mente). O confinamento teve ainda uma dimensão física: fiquei limitado pela cerca do Sítio do Tremontelo de onde saí uma dúzia de vezes em mais de um ano. Aqui aprofundei a ligação ao lugar esforçando-me por abandonar a condição animal e viver a experiência vegetal do enraizamento no solo, o que me trouxe alguns problemas de saúde como ter apanhado fungos nos dedos dos pés. Os telefonemas e as mensagens foram banidos e o círculo de contactos reduzido a meia dúzia de familiares e vizinhos e a alguns prestadores de serviços variados, incluindo transportadores à porta.
As notícias do mundo exterior cingiram-se aos telejornais (preferencialmente de algumas estações estrangeiras) e à leitura de um jornal e um semanário. Pelas notícias, soube que o mundo mudou. Mas mais radicalmente do que me aconteceu há mais de meio século atrás. O segundo tema terá necessariamente a ver com essas mudanças e a sua relação com a segundo pandemia viral. Chamemos-lhe o tema da actualidade.
Finalmente, a divergência entre a evolução do mundo exterior e o tombo no mundo interior causado pelo confinamento, divergência que já iniciou a extinção de ambos. Porque dá que pensar, não é um assunto urgente. O pensamento não se compadece com as pressas.
Estes três temas são assuntos pesados, graves, densos, que servem para reflectir, pôr e contrapor, e ruminar. Mas há também as peripécias do dia a dia que alimentam a vida. Essas só servem para contar. E é sobretudo isso que gosto de fazer nos meus postais: contar. Contar os meus encontros com uma plantinha com o caule quebrado, uma discussão acesa com os bichanos, sem a a complicação de estar a certificar a sua validade, garantia e exactidão. Uma estória será sempre aquilo que se vive uma, e duas, e três vezes, a sós ou com outros companheiros. Que importa que a vida seja curta quando a existência é infinita?
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(...) Irei começar pelo tema confinamento. Trata-se, é claro, do confinamento ditado pelas pandemias: A do COVID, certamente, mas também aquela outra pela provocada por outros virus, igualmente transmitidos em exclusivo de ser humano para ser humano, e para a qual tenho vindo a alertar desde há largos anos. Não se tratou de um confinamento apenas entendido como o cerrar as portas e as janelas que separam do meio social exterior, mas de um confinamento que agravou a minha condição de autista, muito rara e nunca descrita nos manuais e nos artigos científicos, conduzindo-me a uma situação quase de locked-in (encarceramento no interior da mente). O confinamento teve ainda uma dimensão física: fiquei limitado pela cerca do Sítio do Tremontelo de onde saí uma dúzia de vezes em mais de um ano. Aqui aprofundei a ligação ao lugar esforçando-me por abandonar a condição animal e viver a experiência vegetal do enraizamento no solo, o que me trouxe alguns problemas de saúde como ter apanhado fungos nos dedos dos pés. Os telefonemas e as mensagens foram banidos e o círculo de contactos reduzido a meia dúzia de familiares e vizinhos e a alguns prestadores de serviços variados, incluindo transportadores à porta. (...)
Do último postal
Confinar (do latim cum + fine) : andar perto do fim.
Dito de outro modo: confinar é andar para a frente e para trás, com o sentimento azedo de quem se enleou na desesperança do encarceramento, a rondar a cerca da sua jaula. Confinar é estar na excitação dos confins da vida e, ao mesmo tempo, estar na angústia das cercanias da morte, na proximidade dos finados.
Há quem pense que o confinamento é um movimento retrógrado, mais próprio da terceira idade do que a vida activa. Que é um retiramento do mundo na iminência do regresso à terra. Que é um regresso ao ovo. Não é de todo errado o que é completamente errado. O confinamento não tem idade, dá-se na extremidade do tempo. Não eram velhos, eram revolucionários, e alguns muito jovens, os que se retiraram e depois se relançaram no mundo e na história do homem: Zarathustra vivendo uma década, não se sabe ao certo, se no alto de uma montanha, se no deserto; Sidarta levando uma vida mendicante fora dos berço dourado das suas origens; Moisés subindo ao cume do Monte Sinai; O jejum e a tentação de Jesus no deserto; O retiro de Maomé para o Monte Hira.
O meu confinamento foi, e é, somente meu: aconteceu por auto-imposição e deu-se já numa época anterior ao aparecimento do Covid-19 e nada teve a ver com a procura de qualquer iluminação. À guisa de explicação, devo confessar que se prendeu com o afastamento de sucessivas epidemias de virus mentais que assolaram e me devassaram o ecossistema mental e tornaram a vida social insustentável e perigosa, na autoestrada de dupla via, a das redes sociais e a da realidade mundana.
A fase inicial desse confinamento, devo declará-lo por reverência para com a verdade, foi muito agradável e durou anos. Foi uma espécie de afastamento do habitual e um retorno bucólico à natureza (Nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in umbra, Formosam resonare doces Amaryllida silvas..), a um estado que senti conatural com a legítima natureza humana tal como está conservada, supostamente, nos nossos prehistóricos genes. Em contacto com a natureza, o corpo estafa-se, a mente retrocede e repousa, e o cérebro agradece. A eliminação dos estímulos urbanos, dessa Lisboa que ficou para trás, ligeiramente presa por uma memória tenaz, e a rarefação do contacto social em termos físicos, o foco na natureza e a actividade física praticamente eliminaram o estresse, colhendo oxigénio bastante para estimular uma respiração profunda, copiosa e restauradora. O corpo, em paz consigo mesmo, recolheu beleza e conforto gratuitos dos gorgeios da passarada, dos matizes variegados dos verdes da floresta, do arco-iris das flores primaveris, dos múltiplos rubros outonais, da frescura sedosa das manhãs, do espectáculo repetido no dia a dia dos nasceres e dos pores-do-sol.
O que tem de bom, tanto o retiramento do formigueiro social, assumido como um certo entendimento de bem-estar material e das acessibilidades a bens e serviços, ordenação jurídica, moral e cultural dos comportamentos, os entrelaçados,emaranhados, relacionamentos interpessoais, como a ocupação do tempo em actividades pedais e manuais, é a acalmia dos maus augúrios ou da simples chateza do telefone, da palestrice bacoca da televisão e da devastação emocional e intelectual das telerredes/terroredes sociais. Talvez um dia voltasse, de quando em quando, pois a separação da natureza, e o seu regresso a esta, estão inscritos, independentemente da forma que assumem no tempo e no espaço, no ciclo de vida imutável da espécie humana. Não tivesse rebentado a pandemia!
Se já me havia confinado do mundo exterior, foi aí que senti o mundo exterior confinar-se de mim.
Como se todos tivessem partido e me tivessem deixado para trás.
Teria entrado no meu horizonte de eventos?
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A tendência normal de quem se encontra numa situação de clausura é deixar tudo para amanhã. A actividade começa a tornar-se fastidiosa e o tempo parece que sobra.
Os latinos tinham uma outra palavra para designar o que hoje nós, os neolatinos, chamamos em português de amanhã (mañana, em castelhano; l’endemà, em catalão; deman, em occitano; demain, em francês; domani em italiano; mâine, em romeno, etc.). Essa palavra era: cras. Não conheço, mas invejo quem conhece, a história de como desapareceu o termo. Das duas, uma: ou pertencia ao léxico do sermo eruditus, a maneira distinta de falar das elites romanas cultas, e, por isso, nunca desceu aos hábitos de fala das classes populares ou dos povos romanizados; ou entrou em desuso, sendo substituída por uma expressão catacrética, qualquer coisa como "na próxima hora matina".
A matina (latim: matutina) era a primeira parte do dia, a que começava no seu alvor. O deixar para outro dia, ou, como dizemos coloquialmente, o adiar, era coisa para não deixar para muito tarde, era coisa para uma pessoa se levantar cedo e fazê-la logo de madrugada. O que é uma decisão de bom senso pois toda a gente sabe que ao fim do dia temos as reservas físicas e mentais esgotadas e que, após um sono reparador e o erguer cedo, já matutamos bem e estamos em plena forma para realizar com sucesso a mais complicada das tarefas.
Não foi travestido de epopeia que evoluiu o significado do termo: o ideal epicurista cedeu o lugar ao laxismo hedonista. Adiar, sine die, como se acrescenta pleonasticamente nos tribunais - o que muito convém quando o presumido inocente vem da nata da sociedade e é autor de grandes canalhices - passou a significar passar para um dia indefinido. O "deixar para amanhã", um amanhã alargado de 24 horas, tem o significado actual de "deixar sempre para amanhã".
Quando eu era pequenino, adiar, ou deixar para amanhã, era um sinal da fraqueza moral chamada indolência, e essa fraqueza resultava, por sua vez, do esbanjamento de uma como que energia vital: a preguiça. O assunto era razoavelmente tratado com as técnicas do chicote e da cenoura e não havia justificação de atrasos para nenhum atraso de vida. Lá nos safávamos o melhor que podíamos e o melhor dos resultados do sucesso era um sentimento muito acalentador de mérito. Hoje, os tempos são outros, são tempos, como diriam os meus avós, de abastança, e as posturas humanas são pintadas com cores mais ténues e suaves e tratadas com maior brandura.
De abastança para alguns, para uma reduzida elite. A maioria, que são os desgraçados de hoje, nem tem trabalho, nem tem onde cair morta. E é num contexto de elitismo que ressurgem as palavras outrora adormecidas das elites romanas. E, assim, reapareceu surgido do nada o velho e aristocrático cras na forma verbal procrastinar: deixar para amanhã, já não de uma forma plebeia, mas com um certo e discreto charme.
O curioso é que a palavra não veio sozinha. Como um bom produto a lançar nos mercados da nossa sociedade consumista, teve de ser apresentada através de uma embalagem que passe uma imagem de luxo e de vida desafogada. Para além do nome sonante e da imagem vistosa, deve vir embrulhada em embalagem de luxo e apresentada por várias descrições como a habitual panóplia de certificações e instruções, garantias e apoios institucionais.
Preguiça? Qual preguiça, nada disso! asseveram os psis de todos os contornos, sejam científicos, paracientíficos ou anticientíficos. Uma dificuldade, apenas, em controlar as emoções. As emoções, veja-se, a nova panaceia para justificar vícios e anormalidades.
Cá para mim, que sou da escola antiga, procuro controlar as minhas emoções com compromissos, trabalho, disciplina e resultados. As que não conseguir controlar, paciência, que saiam e expludam com algazarra e fulgor. As que nos enrolam a vida que fiquem para amanhã ou para S. Nunca. Temos direito a uma vida, e só uma, e o dia de hoje é o único que conta. Não dá para viver pendurado no a fazer e no por fazer.
Mas, a tendência normal de quem se encontra numa situação de retiramento é perder o horizonte de referências temporais. O confinamento amolece o tempo.
[ Permitam-me um aparte: isto do adiamento não é coisa exclusiva dos indivíduos. Existe também em termos institucionais e tem um nome: a burocracia. Talvez venha a ser assunto num próximo postal. ]
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Olho para os rascunhos dos vários postais que prometi escrever, uns mal alinhavados, outros demasiado desenvolvidos, todos de uma chateza de desesperar, e decido-me a dar um olá ao mundo para dizer que estou vivo, e para eu próprio acreditar que estou vivo, sendo o estar vivo a única coisa que resta de valor, com o planeta como o conhecíamos a ruir e as relações entre os humanos a pautarem-se pela extrema exploração, saque e dominação como nunca visto antes, com o desplante, a soberba e a maré de ódio a transbordarem no retorno do fascismo, do populismo e do terror divino travestido de artifícios tecnológicos auto-declarados inteligentes.
Tem estado um tempo óptimo, bom para os últimos trabalhos de exterior deste ano. A partir das cinco da tarde vem um frio de rachar e é nessa altura que recolho a casa e ocupo-me a organizar a documentação, pessoal e familiar, os meus arquivos e bases de dados. Um pouco de televisão para distrair, alguma socialização com os gatos e as tarefas domésticas preenchem o resto do tempo em que estou acordado.
Depois do ciclo diário de calor-frio, veio hoje o ciclo de seca-chuva. Como ainda é cedo, deixo-me ficar na cama a escrever ou a ler e a ouvir a chuva miudinha, única sonoridade que me concedo depois de ter proscrito a música, tanto aquela que é, como aquilo que tal lhe chamam.
Os gatos, coitados. Passavam o dia debaixo das sebes ao pé da porta da cozinha, em parte à sombra, em parte ao sol, a dormitarem, com a parte do cérebro que escuta e filtra os sons fastos que prenunciam iguarias. O Borboleta, mais afectuoso, provocava-me assiduamente, rebolando-se, ávido de festinhas e mais festinhas. Dorme à soleira da porta com a cabeça reclinada sobre os meus chinelos de andar lá fora. Cheira-os de vez em quando, confirmando que repousa sobre a representação inequívoca da autoridade humana, o que lhe permite dormir confiante e importante. Agora, não sei onde param, acoitados em qualquer sítio que os abrigue da chuva.
Agora vou despachar este. O bom destes postais e que não carecem de selo nem de preencher o destinatário. É só enviá-los e eles aí andam, à volta do mundo, à espera de serem apanhados por alguém.
A chuva parou. Parece. Ao menos, deixou de se ouvir.
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Estávamos, eu e o Borboleta, expostos ao sol junto à porta da cozinha. Eu, estendido na liteira azul com a cabeça ao mesmo nível dos pés; ele, com a cabeça recostada nos chinelos que eu, indolentemente, deixara cair para o chão. Depois de um longo silêncio, em que vagueara perdido pelo mundo imaterial da mente quasi-adormecida, pareceu-me ouvir o Borboleta dizer:
"Porque é que não nos contas também as histórias que contavas aos nossos avós?"
Tentei sintonizar a mente em estado de confusão crepuscular num espaço e num tempo adequado ao que me parecera ter ouvido. Não devia estar a sonhar, mas também não tinha a certeza que já tinha aterrado no mundo físico real. Encarei a cabeçorra do Borboleta, que olhava na minha direcção, e ainda fui a tempo de reparar no seu olhar interrogativo. As palavras dele já tinham dado a volta ao roseiral, circulando entre os troncos da pereira e da oliveira, e retornaram aos meus ouvidos de modo a permitir-me anotar o ênfase que ele tinha posto no "também".
"As das luzinhas que punhas nas árvores por causa dos astros e dos deuses", insistiu. O que de imediato me fez recordar o Tigre e o Areias ao meu lado, com o An Jie e a Julieta do outro, a ouvirmos as estórias do Rodrigo no Natal de 2006. "Olha lá, explica isso dos deuses que a malta toda cá da tribo não percebeu patavina".
Não perceberam, nem vão jamais perceber, cogitei. Também eu, ainda hoje, me vejo à nora a compilar, a organizar e a decifrar os escritos do Rodrigo. E atabalhoei uma explicação para descarga da minha consciência e uso instantâneo: Deus é uma estrutura neuronal complexa, inscrita pela evolução no cérebro humano. Tu és um gato e só percebes aquilo que o cérebro de um gato está apto para perceber.
"Nós, os gatos, somos pacientes. Podemos estar horas imóveis no meio do prado à espera que um pequeno animal se mova, não podemos ?" Anuí com um aceno de cabeça. "Então também estaremos aqui à tua roda o tempo que for preciso para te ouvirmos. Fica com isso dos cérebros para ti e fala-nos do que gostamos de ouvir. Mesmo que fiquemos sem perceber isso dos deuses, ficaremos de certeza a saber um pouco mais dos bípedes pelados."
A resposta do Borboleta desorientou-me devido à sua perspicácia. Nunca tal me tinha ocorrido, embora o Rodrigo por várias vezes me tenha advertido de que os felinos nos estudavam atenta e assiduamente. Provavelmente, conversavam estes assuntos entre eles. Nas nossas costas, claro. Concordei no meu íntimo que, na realidade, a melhor maneira de compreender o humano é estudar os seus labirintos mentais.
Está certo. Podemos combinar isso. Reúne lá a tua malta no princípio da tarde, enquanto ainda está calor, e eu vou contar-vos todos os dias um pouquinho da história da humanidade e dos deuses que nos acompanharam nessa história. Sabias que os egípcios tinham deuses que eram gatos?
"Saber, não sabia. Mas não foram os únicos. A maluca da Madona considera-se uma diva, vê lá tu." E, dizendo isto, o Borboleta abanava o rabo de uma forma com o mesmo significado com que nós humanos abanamos a cabeça a dizer "não há pachorra!"
E a Madona, que dormitava à sombra do espinheiro-alvar, levantou-se e, de cauda em leque, passou à nossa frente a pavonear-se, em poses de passerelle. E a conversa desta vez ficou por aqui.
