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Está um daqueles dias que não apetece.
Aparentemente passa-se tudo "lá fora", no mundo. Chove a rodos. A água a cair do telhado do alpendre, o lado que não tem algeirós, faz estrondo de cascata. Está sombrio, o verde dos sobreiros empalideceu como numa fotografia sem cores. A temperatura ambiente do interior não dá conta de si, escondeu-se de mim para que não a sentisse. No silêncio da casa, ouve-se o tic-tac dos relógios baratos espalhados por cima de todos os móveis. Aparentemente o mundo está desanimado. Parece que desistiu de ser um mundo e que abandonou a pessoa que nele habita, eu.
Nem tenho, neste preciso momento, o mundo de outra pessoa para partilhar. Estou só, mergulhado num corpo e numa natureza indiferentes à minha existência. Um corpo que me atormenta com o seu desgaste, como um carro muito usado e sem manutenção, mas, mesmo assim, indiferente à minha existência.
Um corpo que constantemente me manda à cara um "tu não existes, quem existe sou eu e ..., aviso-te!, por pouco tempo mais".
E o corpo está mergulhado numa natureza, que eu julgo que é o mundo. Era bom que fosse! O mundo tem uma origem e um destino que eu criei livremente, que eu iluminei com o meu lumen naturale, que eu dispus criando jardins e colocando criaturas que os habitam, que eu achei belo ao ponto de me enternecer com a minha própria obra. Vem a natureza, quando lhe apetece, não pede licença, não dá explicações, interfere, desalinha, desmoraliza.
Eu a pensar que faço milagres: mobilizo o conhecimento, aplico tecnologias, faço danças e imprecações, digo rezas e profiro maldições.
É então que a chuva e a escuridão se instalam "cá dentro".
Na realidade, não se instalam. O olhar volta-se para dentro e descobre que é a tempestade, o estrondo, o seu lodaçal e a sombra que escapam lá para fora, para o mundo, em tropel desenfreado. Por outra porta, os 4 cavaleiros voltam a entrar, e instala-se o carrossel. E a gente anda ali num rodopio de fim-do-mundo. E eu agarrado à teta de uma rinoceronte de madeira.
E la nave va.
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Se atentar ao facto de ter estado, ao longo deste ano, mais dias em Boston do que em Lisboa, isso mostra bem a vontade que tenho de sair do meu cantinho nas terras de Santarém. Não que não tenha vontade de sair, de vir ao encontro das pessoas que amo, de partilhar as suas vidas. O problema é ter uma personalidade do tipo da das árvores, que gostam de assentar raízes no solo, que não têm vontade nem capacidade para se deslocarem para outras geografias.
Vistas as coisas de uma perspectiva pública, isto é, vendo-me como um ele, diria que ele é uma pessoa sorumbática e associal, um misantropo. Nos tempos que correm, produto da evolução mecanicista e funcionalista do cartesianismo, este tipo de asserções colhe escassa aceitação. Sendo a pessoa um ser digital, mais uma virtus "cogitans" do que uma res cogitans, só tem que estar ligada digitalmente aos membros da sua comunidade digital, abandonando a carcaça extensa num sofá, ou face a uma consola, e vivendo intensamente num destes novos continentes à deriva chamados youtube, facebook, instagram, skype, whatsapp, twiter, linkedin e sei lá que mais, ou fazendo colectivamente incursões dum para outro em grandes vagas migratórias.
O que não é o meu caso: gosto pouco ou nada de redes digitais e vivo no mundo rural real onde a internet é uma piada grotesca escrita na facturas da minha companhia de telecomunicações. Electricidade também não há por lá quando chove, mas vale a pena andar por casa à noite com a luz do telemóvel, que este para pouco mais serve e a chuva é lá precisa.
As maleitas são manifestações da gravidade que atrai o corpo para a terra e que o planta no solo. As raízes crescem em todas as direcções e vão à procura de outras raízes para estabelecerem uma verdadeira comunidade florestal. As redes de raízes e fungos que se entretecem, como neurónios ou astrocitos do subsolo, são a grande teia por onde circula seiva e informação real, química, que é a natureza de toda a emoção animal. E tudo se faz um.
Agora, estou para aqui na minha cama de Lisboa, sem grande queda para adormecer e a ouvir a chuvada wagneriana que se abateu sobre a janela do meu quarto. É uma chuva apressada, citadina, carregada de estresse.
Adormeci e acordei com a luz da rua.
Voltei a adormecer e a acordar com a luz do dia. O céu estava descoberto e ouvia-se o pingar monótono, entediante, das gotas dos beirados.
Peguei novamente no iPad e no lápis electrónico para acabar estas notas.
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Agora é que desatou a fazer frio a valer. Tem sido assim nos últimos dias: o sol começa a pôr-se, a temperatura cai a pique e torna-se impossível continuar no exterior. O interior está relativamente bem aquecido e, como não há muito a fazer, deixo-me ficar horas a fio ao computador a trabalhar no inventário das plantas. É trabalho que paga mal, mas que não é muito exigente. A cabeça fica meio disponível para pensar em paralelo noutras coisas e ao cabo de um ror de tempo dou com o acumulado dos frutos desse trabalho. A jeito de balanço, posso garantir que já consegui unificar os três sites, corrigir uma imensidão de erros, introduzir melhorias significativas, mas, mesmo assim, não me dá para ver peva ao fundo do túnel, como é hábito dizer-se. É um trabalho parecido como o de dispor os tarecos numa sala da casa. A simples entrada ou saída de uma peça de mobiliário força-nos a arrastar os outros todos para novas posições, de um lado para o outro, até restabelecemos uma nova harmonia. O processo não está garantido à partida. Embora algumas intuições dêem certo à primeira tentativa, requerem-se geralmente múltiplas e variadas iterações. O mesmo se dá para um quadro que se ponha na parede que logo vai embirrar com a arrumação dos que lá estavam. E é assim com muitas coisas, suponho que essa seja a lei universal que governa tudo o que há no mundo.
Um pouco mais tarde do que é habitual para a maioria das pessoas - estou eu para aqui a supor - atiro-me ao jantar, desde o prepará-lo até ao arrumar da cozinha e, depois, vou sentar-me a ver a série de televisão que estiver a passar na RTP2. Este é o único momento que dispenso à caixinha mágica a qual tem o grande conveniente de me iniciar no primeiro sono da noite. É claro que a transferência do sofá para a cama, quando acordo no meio de dores e aleijões de todo o jeito, com todas as partes do corpo dispostas como uma outra Guernica do Picasso, me faz retornar ao estado de consciência vigil e força-me a procurar tarefas adequadas a esse nível como, por exemplo, escrever postais.
De manhã, depois de me levantar, ainda vou ter que dar despacho a muitas coisas dentro de casa. Enquanto me espreguiço, e raspo a unhadas a pele coriácea da existência a ver se encontro algo lá por baixo, abro as portadas do quarto para deixar entrar o sol, e deparo-me com a película branca de geada que cobre toda a paisagem e sinto o frio cortante a trespassar-me a cara.
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Feitas as despesas do pequeno-almoço, o meu e o dos bichanos, lá me vou, todo empacotado, estilo cebola, a inspeccionar os estragos da geada. Desta vez foi um arbusto plantado no início da Primavera, três exemplares dispostos em sítios diferentes que haviam crescido magnificentemente, com as suas folhas do tamanho de orelhas de elefante. Em dois dias apenas as folhas murcharam, passaram de verde claro a azul acinzentado e com a consistência de lenço de papel num balde de água. Ainda não havia sido taxonomicamente identificado. Esperemos pela próxima Primavera para ver o que se salvou e logo trataremos disso. |
As coisas têm sido assim nos últimos dois dias. Hoje há um sol envergonhado, está o chão todo molhado, até debaixo do alpendre, e não se vislumbra uma ponta de geada. Possivelmente está mais quente. Mas daqui, com quase todos os termómetros de serviço debaixo dos cobertores, não se dá por isso. Vou ficar enterrado mais uns tempos a ver se dou um avanço neste postal.
Afinal o dia até se recompôs e começou a mostrar uma cara agradável durante o almoço. Tinha feito um assado de legumes e na cozinha sentia-se o calor do forno e o aroma do assado. O almoço foi frugal mas reconfortante de modo que até deu direito a uma bica, coisa a que me ando a furtar nos últimos tempos. Os gatos não me podem ver a sair a porta da cozinha com uma chávena na mão que não venham logo a miar em ruidosa manifestação de protesto colectivo. Às vezes cedo a pedagogias malucas pondo-lhes a chávena à frente dos focinhos bigodudos para sentirem como lhes é desagradável o cheiro do café e reconhecerem que nem tudo o que serve para mim serve para eles. Conceitos destes não penetram crâneos felinos nem os corações sensuais das gémeas angorás. Viram-me as costas indignados e vão-se deitar à meia sombra dos arbustos do jardim.
Saí bem disposto para trabalhar. Andei a transplantar umas couves para uma cama definitiva na extrema sul e, depois, fui buscar uma mangueira para as regar. Aproveitei a deixa para regar grande parte do jardim. Por pura diversão, empurrava também com o jacto da rega as folhas tombadas dos carvalhos para as bermas dos passeios. Caíam em abundância não sei bem porquê. O som simulava o da queda no chão dos pingos anafados da chuva, mas não chovia. Era elas a caírem todas as mesmo tempo. Aprecio muito esta característica do carvalho português, a marcescência, que o torna diferente das outras árvores - nem perenifólio nem caducifólio: as folhas vão-se desprendendo mas permanecem ainda na árvore, durante longos tempos, enquanto se formam folhas novas. A dada altura caem todas em sequências rápidas como o arroz arremessado sobre os noivos recém-casados. | ![]() |
O resto do tempo passei-o na mata a recolher folhas e ramos secos caídos das árvores e a levá-los para o local onde se irá fazer o próximo composto. É varrer com a vassoura de jardim, arrastar os montículos com o ancinho, apanhar para o carro com a forquilha, atestar e compactar e, ala, lá vamos nós, eu, o carrinho e os gatos que nos acompanham para todo o lado, percorremos os caminhos da mata, passamos no Eixo Norte-Sul à sombra dos marmeleiros, a pisar os marmelos negros e engelhados que se acumulam no solo, até entrarmos no campo ensolarado a norte do pomar onde vou dispor os materiais nos montículos de ramos de poda e de erva ceifada que lá se acumula.
Já ia bastante adiantado na quantidade de trabalho que me havia proposto fazer quanto desabou uma fonte bátega de água. Recolhi a casa.
Apesar de ser ainda muito cedo decidi que não havia nada mais a fazer lá fora. Tomei banho e vesti o pijama. Quando assim é, acontece o inevitável. Só me deito alta madrugada. Agora é outro dia, levantei-me muito tarde e estou a despachar este postal que fala de quatro dias a que chamo hoje.
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Deu-me para isto: ir de vez em quando a Telheiras. E tudo começa porque, não indo a Maria à montanha, vai a montanha à Maria. Também há outras razões, como o aniversário com festa-surpresa da Sãozinha lá para os nortes de Mafra. E uma razão acrescentada que dá para diferentes combinações de montanha e de maria, que é poupar-se energia, que é cara, e o mau tempo requer consumo dela. Assim, consumindo juntos, cá nos aquecemos melhor poupando as energias para fins bem mais nobres e para alturas mais frias. Já não falo da chatice do regresso e da minha falta de gosto pela condução. Assim, vou ficando por cá, não em férias, não exilado, mas na condição de expatriado. Sou um expat.
Os expatriados sofrem de diversos problemas. Um deles, o de integrarem-se na cultura local, o que, por vezes, revela-se o décimo terceiro trabalho de Hércules. Imaginem-me na cidade a tentar viver como um urbanita. Ainda consigo fazer uma passeata até às hortas colectivas de Telheiras, ou passear-me nos jardins que circundam a zona do Metro. E é um pau! Depois, atrapalho-me com o atravessar as ruas lotadas de carros, as buzinadelas constantes, os cheiros dos restaurantes, o garrote da densa atmosfera local, os anúncios. Os anúncios, sim, que uma cidade é um labirinto caótico de sinais, de signos, de símbolos e de publicidade. E eu só sei ler o que me diz a passarada, a orientação das páginas das folhas das árvores quando lhes sopra o vento, as nuvens que passam, os primeiros pingos, os néons de luz solar que se entrelaçam na ramagem do arvoredo e a disposição dos meus gatos.
O segundo problema que me vem à lembrança é o da comunicação. Quando falo de flores, de ervas, de árvores, de jardins, de florestas, todas essas palavras evocam na imaginação dos meus interlocutores, ou filmes que viram, ou periódicos que leram, ou folheto de publicidade turística de destinos exóticos, ou letras de canções dessa desgraça a que hoje se chama música. Falar de erva é tabu, vai logo o assunto para consumos. E se eu consumo esta ou aquela erva nas minhas infusões, uns perguntam-me se dá moca, outros se dá pedra, e eu não sei se me apetece mais responder à mocada, se à pedrada. E não há tradutor Google que me safe nestas atrapalhações.
O terceiro, é o tempo da expatriação. Como não leva mais do que um fim-de-semana, não me dá tempo suficiente para me aculturar ou para aprender a linguagem urbana. E, sendo assim, torna-se cada vez mais penoso e inglório o esforço de readaptação.
Finalmente, um problema de natureza existencial. Fui expatriado com os meus tenros vinte aninhos para "algures na Região Militar de Angola - Zona Leste" para "cumprir o serviço militar". Não pertenci a nenhuma força especial nem às forças de quadrícula que ocupavam e policiavam o território e as gentes. Fazia parte de uma Companhia de Cavalaria independente que mais não fazia que andar de um lado para o outro a tapar buracos e a render tropas em trânsito para o Puto. À pala disso, corri a pé a Lunda Sul, o Moxico, o Bié, o Kuando-kubango, sofri bastante com "Lisboa", com os comandos dos batalhões anfitriãos, com os filhos da puta da DGS, com a OPVDCA e com os chefes de posto, mais do que com o MPLA, o ELNA ou a UNITA, os exércitos das movimentos de libertação. O melhor do meu tempo, apesar da guerra, foi andar no mato, longe dos SITREPs e das formaturas, na companhia afável e culta dos Lunda-Tchokwe, dos oficiais catangueses ("ailleurs au Congo") formados em Bruxelas ou dos meus bravos soldados, ver nascer e pôr o sol sempre à mesma hora, as quedas do rio Chicapa, as palancas e pacaças a pastarem nas xanas dos rios, as sombras das árvores desenhadas no horizonte, o cheiro das queimadas ou das fogueiras das sanzalas, os putos ranhosos que nos esperavam a gritar e a cantar nas proximidades dos aldeamentos, as lavras de mandioca, as raízes amargas que desenterrávamos para estancar a sede. Eu sei lá que mais, isto é apenas o que consigo lembrar e exprimir, mas não esqueço, está bem viva e actual, a experiência vivida, este não sei quê que só dá para resumir com a palavra saudade.
Fui repatriado com a sensação de ser novamente expatriado. Mais tarde, descobri o terreno onde criei o Sítio do Tremontelo, com todas as plantas e os meus pequenos leõezinhos. E vi que era bom. E descansei.
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Quanto à empatia de que agora tanto se fala nada sei. Andei a interrogar-me sobre o seu significado percebendo que a palavra nada tinha a ver com o “empathos” grego e fui dar, ao cabo de um extenuante exercício de elaboração mental, à presunção de que a dita palavra poderia ser a crase de “empada” com “tia”.
Quanto a empadas, há que distinguir as empadinhas dos empadões. Bem! É tudo questão de forma e tamanho, mas vai dar tudo ao mesmo: uma mistela empanada, embrulhada em massa de pão. São próximas do pastel, uma misturada de qualquer coisa com massa de pão, tal como o pastel de bacalhau, a que se dá a forma com duas colheres (de cozinha, claro). Perdi algum tempo a reflectir sobre a razão por que o pastel de nata é um pastel e cheguei à conclusão de que é antes uma empadinha sem tampa. Uma falsificação que não fica por aqui. É uma dupla falsificação porque a nata também não é nata. Há quem diga que é um pastel de nada. Mas não é tudo feito de nada?
Na empatia, que tem, como se viu, todas estas mixórdias pasteleiras, há também a questão das tias. Não se trata, claro, das irmãs ou cunhadas dos nossos pais. Ou das tias espanholas, termo que poderíamos traduzir por tipas ou gajas, o que seria uma foleirice inaceitável. As tias que cabem nesta conversa conheci algumas quando trabalhei na Lapa, um sítio chiquérrimo, em lojas que não são pastelarias mas onde há pastéis e uma intensa vida social, uma espécie de tabernas asseadas onde só se bebe chá e se fala muito partilhando os pequenos segredos da Sociedade com ésse maiúsculo. São, geralmente, classe média alta, católicas, meia idade, solteironas, bem conservadas de saúde e de aspecto, blasées (no sentido em que se interessam por tudo e por nada, menos por assuntos sérios), as suas frases saem com uma melodia inconfundível e as palavras têm aquele acento típico dito de Cascais, e têm imensos dotes pasteleiros.
Temos aqui os ingredientes para compreender o que é, na realidade, a empatia. Agora, misture-se tudo até se formar uma massa homogénea e vai ao forno em lume brando. Em forminhas ou num tabuleiro, é como se queira!