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Aqui estou no pequeno mundo do colar esmeralda (" Emerald Necklace") e do Charles, o único sítio da América aonde aceitaria viver, salvo se estranhas ocorrências me forçassem a isso.
Cheguei estando à minha espera um calor simpático que se torna muito acolhedor quando a luz natural dá lugar, para usar um lugar comum, aos néons da cidade. Hoje está de chuva, dizem os bruxos que até à uma da tarde. Fiquei retido num café simpático a mandar fotografias para os amigos pelo Facebook e a fazer companhia à Graça que se esforça por trabalhar. Digo que se força, não por algum defeito moral como a preguiça ou a fraqueza, mas porque os édenes idílicos são contrários ao trabalho e é preciso pecar, comer maçãs, sei lá, para se começar a trabalhar a terra com as mãos e a ganhar a comidinha com o suor do rosto.
Atrás de mim, nas minhas costas, a Cambridge street.Ouve-se aqueles lamentos rápidos e acutilantes em crescendo decrescendo que os pneus das viaturas emitem em contacto com o piso molhado. À minha frente, vinda das paredes, a batida quase tropical de um quarteto de jazz onde sobressai o piano e o saxofone. A Graça acompanha o ritmo no teclado do seu Mac, alternando com as garatujas com que esferográfica o seu caderno.
Estranhos pensamentos volatilizam-se à boleia do cheiro das sementes, ervas e especiarias que emanam dos bolos do balcão. Eles são os gatos e as gentes do Tremontelo, o por onde andarão os meus filhos e o resto da família, o braseiro que grassa na terra mãe e a falta de chuva, as pequenas coisa de que me esqueci e que agora dariam um jeito danado, o que deixei por fazer e que terei que emendar rapidamente quando chegar, como e quando irá ser a próxima saída. Sim, que a ousadia de sair só me dá quando estou fora!
A lenta ternura do jazz aproxima-se do meio-dia.
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Lembro-me do que aprendi na faculdade nos anos 80 acerca dos esquemas. Revi este assunto numa outra perspectiva, uns bons aninhos mais tarde, quando frequentei o curso de Ciência Cognitiva. No essencial, um esquema é um conhecimento prévio, esquemático como o nome diz, que se aplica a uma situação nova facilitando a sua interpretação. Difere do preconceito, que é rígido e imperativo, o que não vem agora ao caso.
Sem deter um número razoável de esquemas é impossível compreender o mundo. E compreender o mundo é reconhecer em situações novas aquilo que já é conhecido. Sei que para andar de transporte público devo adquirir um título válido, seja um passe, seja um bilhete adquirido na estação, no interior do veículo ou na Internet.
Raramente as variações são locais: depois de inventadas tendem a espalhar-se por todo o mundo e isso facilita- nos imenso a vida. Aqui, em Cambridge Street, quando entro no 69 para ir para Lechemer ou para Harvard, puxo da carteira, coloco-a no leitor que emite um som e o motorista diz-me thank you. O facto de o motorista me agradecer tem a ver com a realidade - Boston não é Lisboa - e não com o esquema. Isso é um facto digno de nota, é notícia, é aquisição de conhecimento (a raiz latina para conhecimento, cognoscere, é a mesma de "notícia" e de "notoriedade").
Ao longo do tempo, porém, as variações dão origem a noras formulações dos esquemas. Os nossos avós jamais poderiam imaginar uma compra pela Internet; os nossos netos vão ficar de boca à banda ao saber que havia outras maneiras de comprar coisas.
Assim, quando ando aqui pelas Américas, já sei como é que as coisas se vão passar e só tenho que me informar dos pequenos detalhes e das alternativas que tornam as viagens mais cómodas e baratas. Olha: as lojas à 1 PM estão fechadas.
As vezes as coisas que vemos no estrangeiro não encaixam nos nossos esquemas. E aí que as coisas se tornam interessantes. São essas as coisas que vamos contar quando chegarmos. Estou a ver as narrativas mirabolantes dos viajantes que chegavam das terras incógnitas no crepúsculo da Idade Média, como o relato de Antonio Pigafetta na sua chegada ao Brasil. Qual é a etimologia de "maravilha"? E mirabilia , aquilo que espanta. Mas, a realidade é espantosa quando não se enquadra nos nossos esquemas.
Aí, nascem as narrativas do maravilhoso.
Ao contrário da tendência para exagerar, que sendo voluntária e consciente, é necessariamente lógica, e prende-se muito com as vaidades pessoais, próprias ou de outrem, a hipérbole, ou o esticar as coisas para mostrar como elas são grandes, flui fora dos holofotes e é inócua. A pequena mentirola, por seu lado, serve para fazer passar a realidade quando ela não se encaixa no nosso conhecimento.
Embora os esquemas sejam universais para um dado contexto cultural e histórico, o seu uso é muito particular e prende- se com a história e os interesses individuais de uma pessoa. Quando viajamos os dois, ela vê coisas que eu não veria se ela não me chamasse a atenção para elas: "olha, o azul daquela casa é muito giro". O contrário assenta como luva à situação inversa. Onde tinha ela a cabeça quando passámos por um jardim deslumbrante com espécimes raros? Esta observação vai levá-la a retorquir. Bolas! De que está ela a falar? Se eu vi o quê? Respondo sempre que não me lembro, o que é mentira. Como posso eu lembrar-me do que não vi?
Os esquemas competem entre si para se aplicar à realidade. Uma conversa entre duas pessoas sobre um evento é uma luta entre os esquemas dominantes de cada uma. Não se trata de discutir ideias sobre a realidade, trata-se de discutir a realidade dentro da própria realidade, ou seja, numa dada situação como devo comportar-me? Para onde devo dirigir o olhar? Em que é que me devo concentrar? O que reter em memória?
Mas essas lutas dão-se também, e sobretudo, na cabeça de cada um de nós. Esta realidade é melhor entendida usando o esquema A ou o esquema A'? Por isso, gosto de revisitar os sitos que amo. Em 2013 apaixonei-me pelo Arnold Arboretum. Passados 6 anos tive que o revisitar. Como foi muito fácil reconhecê-lo, pude pesquisar novas facetas que respondem aos meus interesses. Fui lá encontrar respostas para perguntas que levava na algibeira. Porque o conhecimento da realidade tem muito a ver com o que queremos fazer a respeito dela.
E muito pouco, ou mesmo nada, com a verdade.
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Passou-se mais de um mês e não me deu para escrever. O espírito humano, seja lá isso o que for, tem destas coisas: ora se entusiama, ora se aborrece, alternando de tarefa em tarefa, pairando sobre as águas, sem método nem fito. Aqui fica o alerta para os que pensam o descendente do 'homo sapiens', este animal moribundo numa natureza em estertor: não esquecer de emular estas características paradoxais do "espírito" humano nas futuras máquinas humanóides, o 'homo ex machina', que o irão perpetuar nas silenciosas poeiras cósmicas.
Mas, como dizia, trocou-se a vontade de escrever pela de caminhar, havia que aproveitar o colorido outonal dos arvoredos da Nova Inglaterra, que se começava a pintar folha a folha, e o tempo soberbo de final de Verão que era muito mais do que uns trocados em fim de viagem.
O pólo das minhas atracções era quase sempre, a sul de Boston, o bairro de Jamaica Plain, um dos 21 bairros (neighborhoods) de Boston, a que chegava caminhando ao longo do Colar Esmeralda, a faixa verde que liga os parques mais antigos da cidade. O destino preferido era o Arnold Arboretum, o extenso jardim botânico cuidado pela Harvard University. Mochila às costas e máquina sempre à mão, calcorreei as estradas e caminhos, que se espalham como veios na folha de uma árvore, e subi às colinas, para avistar a extensão do parque, lobrigar ao longe o edificado do centro de Boston em que pontificam as torres Hancock e Prudential, e puxar do farnel que despachava com justificada avidez. Depois, a sesta ao sol, com o chapéu a proteger os olhos, a passarada a trinar. Separava a luz das trevas, e via que era bom. No fim, apanhava o metro para Cambridge, com escuro fora e um insaciável apetite dentro.
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Um dia fui com a Graça a Framingham, conduzidos pela Pat. A viagem foi longa, com filas intermináveis de trânsito, com paragem para almoço fora de horas num restaurante chinês que para ali havia. Chegámos tarde ao Garden in the Woods que explorámos convenientemente apesar da escassez do tempo da visita.
Passeei em Cambridge, geralmente à volta da Harvard University e do MIT, ou ficava-me pela margem do Charles e no Mall onde fazia compras. Do lado de lá, em Boston, continuava a preferir o Charles, em particular a sua Esplanade, onde eu e a Graça nos espraiámos nas cadeirinhas do cais, embora a zona antiga, do Common Park ao Haymarket, com compras, visitas ao centro histórico e uma perninha ao Legal Sea Foods, fosse um pólo de constante atracção. É difícil dizer o que é melhor quando tudo é bom. E dito por mim, que não sou homem de cidades, é um elogio insuspeito.
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O regresso à Europa foi doloroso: a chateza da viagem, a desorientação temporal que se prolongou por mais de uma semana, o reaparecimento das mazelas do corpo, a imensidão de actividades e assuntos a retomar, o não saber por onde recomeçar, os males dos outros, os deveres sociais para com a família e alguns amigos, o não saber o que fazer, a inércia, a desorientação e a inépcia.
Precisava de tarefas sedentárias e rotineiras e decidi-me por um objectivo que acalentava há muito, o de suprimir dois 'sites' da internet, o Portal das Angiospérmicas e o Visitas a Jardins, fundindo os três num único, o Sítio do Tremontelo, este em que me encontro a escrever este postal. Isto demora quase há um mês e não sei quando vai acabar, pois há ainda muitos problemas para resolver e outros, insolúveis, para ultrapassar.
O pior deles, o bem mais precioso de um sítio electrónico, o número incontável (centenas?, milhares?) de hiperligações (links) que levaram anos a construir e se perderam num dia. Não será isso uma metáfora do cérebro? Ou da chamada "condição humana"?
A vida é assim, como um rio impetuoso que não sabe para onde vai, só sabe que tem que continuar.
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Hoje em dia, os sítios de chegada são os sítios de onde mais queremos fugir e o mais depressa possível. Digo isto porque os sítios de chegada raramente são os sítios de destino. É o caso do Logan, o aeroporto de Boston, localizado numa ilha e ligado por terra à cidade por dois túneis.
A viagem de ida correu razoavelmente bem, sem incidentes ou desconforto, tirando a escala em Amsterdão que apenas teve o inconveniente de alongar a viagem por mais duas horas. Como facilmente se conclui, a viagem foi longa e, à medida em que o tempo passava, crescia em mim o desejo que este acelerasse, e o desejo era o futuro a querer ocupar o lugar da ansiedade que era o presente de então. Na minha idade, é um desejo suicida: o único desejo saudável é o de que o tempo retarde e, se possível, que pare e o presente se eternize.
Despachadas as burocracias alfandegárias fui azinha (ou seja, com as asinhas dos pés a cem à hora) ter com a Graça. Os momentos que se seguiram não vêm agora ao caso, assim o determina o pudor censório guardião da privacidade das emoções a que naturalmente temos direito. Passado o cerimonial do encontro, dirigimo-nos para o exterior do terminal para apanhar o T na Silver Line.
O The T, ou The Tube, é a designação bostoniana do metro. A rede de metro de Boston abrange, além desta cidade, as cidades de Brookline, Cambridge, Charlestown e Somerville, tão chegadas umas às outras como Lisboa à Amadora ou a Loures. Quando usamos o nome de Boston nas conversas do dia a dia, referimo-nos muitas vezes à Great Boston, a grande conurbação daquelas cidades. A Silver Line é a linha desenhada a prateado no mapa octalinear da rede. Diga-se em àparte que tenho um secreto fascínio por este tipo de mapas produzidos por recurso a um algoritmo genético, uma técnica de computação que utiliza a selecção natural para encontrar e optimizar soluções para problemas complexos. Dito isto - tinha que o dizer! - e voltando à Silver Line, as suas composições percorrem um circuito ininterrupto que liga Logan às principais estações em Boston das linhas com outras cores. Na parte que corre na cidade, sobre rodas e não carris, a composição vai a descoberto até chegar às proximidades do túnel, onde se enfia desafiando as aguas do mar sob as quais desliza velozmente até emergir nas proximidades do aeroporto. Uma característica notável da Silver Line, sobretudo para quem acaba uma viagem transatlântica e trespassa uma fronteira, não tanto administrativa, mas horária e de moeda, e que ainda não teve ensejo de consumir para arranjar uns trocados, nem tempo e oportunidade para obter um passe, é que a linha é gratuita e o acesso às outras linhas outbound, após transbordo, continua gratuito.
Estávamos eu e a Graça à espera, quando por instinto apalpo os bolsos e dou por falta do iPhone. Ele nem nos bolsos, nem na mochila, nem nas bolsas exteriores da mala. Confirmado duas e três vezes. Eu, o moralista obsessivo do planeamento, da previsão de riscos, da verificação e do controlo, perdera um bem que odiava mas do qual iria depender nas minhas solitárias caminhadas nas extensas verduras de Boston e arredores. Denegria-se-me a autoimagem e o amor próprio mergulhava num monte de esterco, assim me via por dentro enquanto socava o rosto da alma desapiedadamente. A Graça, serena e com os pés na terra, trouxe-me de rastos ao balcão da companhia aérea e com calma, expôs o assunto e transmitiu os dados solicitados pela funcionária, que me ia extorquindo a conta gotas, à laia de tradutora, enquanto eu, amarfanhado na pequenez do meu ser e aturdido pelo sucedido, ia dando voltas à memória, que raiva, telefonara à Graça quando aterrámos, teria posto o telemóvel no bolso das calças e este caíra para o assento, tê-lo-ia deixado no bolso das costas da cadeira da frente, caíra ao chão quando ergui os calcanhares para tirar a mala lá de cima da bagageira da cabine? Enquanto cismava a minha vida desgraçada, outros processos iam ocorrendo nas infinitas linhas paralelos do universo. Numa delas, a funcionária do balcão telefonou para o pessoal encarregado nas limpezas a bordo, confirmou-se o achado de um iPhone, que esperasse calmamente sentado que alguém viria trazer o aparelho ali ao balcão. A Graça também dizia não sei o quê que eu ouvia num som rouquenho e alonjado, enquanto repetia o filme interior dos meus movimentos no final da minha permanência do avião. Apareceu um senhor e toda a gente se iluminava de sorrisos sem que eu percebesse porquê. Pediram-me o indicador que apuseram na covinha do iPhone e um ecrã iluminou-se e mostrou o que sempre me pareceu as cadernetas de selos ou de cromos que alegraram a minha infância. Toda a gente irradiava uma impante alegria a que me juntei a esforço, mas agora estava noutra, a experimentar um déjà vu. Na outra vinda a Boston em 2013 sucedera exatamente o mesmo! Quem ainda não percebeu que a vida é o eterno retorno do mesmo, não percebeu nada da vida.
Lá fomos apanhar a linha verde para Lechmere, em Cambridge, e o autocarro 69 para a Cardinal Medeiros, onde morámos quase um mês.
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Umberto de Sousa Medeiros saiu com os pais dos Açores em 1931, com a tenra idade de 16 anos, e foi trabalhar como operário e só começou os seus estudos na universidade quando os irmãos mais novos tiveram idade suficiente para o substituir no trabalho, desconhecendo que iria tornar-se, em 1970, Arcebispo de Boston.
Cambridge, uma cidade pacata ensanduichada entre Somerville e Boston, é a sede do condado de Midlesex, o mais populoso de Massachusetts. O esplêndido rio Charles, polvilhado de aves marinhas e sulcado permanentemente por regatas, separa-a, a sul, de Boston. Aparentemente, apenas. Inúmeras pontes, de estilos e arquitecturas diferentes, anastomosam as duas cidades, ligando as grandes artérias que as atravessam. Parte das grandes artérias de Cambridge foram construídas para ligar entre si as antigas povoações e estas às pontes que as ligaram a Boston, a sede da antiga colónia britânica.
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A mais importante dessas antigas aldeias que deu origem a Cambridge tinha o seu centro no que é actualmente a Harvard Square. A Cambridge St liga Lechmere (O terminal da linha verde), a Cambridgeside Galleria e o Museu da Ciência à extensa área da Universidade de Harvard que se espraia em torno daquela praça. | ||||
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Umberto de Sousa Medeiros viria a receber em 1973 a púrpura cardinalícia das mãos de Paulo VI. Conservador em muitas matérias, posicionou-se entretanto como defensor dos trabalhadores imigrantes, dos pobres e das minorias. Coube-lhe o mérito de emprestar o nome a uma rua no East Cambridge. E a mim a sorte de voltar a morar de novo este ano na Cardinal Medeiros Ave. | ||||
No entroncamento com a Cambridge St, no lado direito, postou-se a igreja católica de Sto. António de Pádua que, por acaso de nascimento, é de Lisboa. Nesta, celebram-se missas e outros rituais em português para a tripla comunidade de gentes lusófonas - portugueses, maioritariamente dos Açores, caboverdeanos e brasileiros. Nas imediações, já na Cambridge St, apanha-se o autocarro 69 para ir no sentido de Harvard Sq ou de Lechmere. | ||||
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Umberto de Sousa Medeiros, Cardeal Arcebispo de Boston, foi apontado como estando envolvido no encobrimento dos criminosos padres pedófilos, mantendo os predadores sexuais activos no ministério. Por outro lado, usando a táctica de desviar o assunto, esconjurava a "cultura homossexual" e perseguia os seminaristas e padres gays com a mesma ferocidade que o juiz Samuel Sewall promovia a caça às bruxas em Salém. (carta de 12 de Fevereiro de 1979 dirigida ao Cardeal Seper da Sagrada Congragação da Doutrina da Fé). | ||||
A Cardinal Medeiros é uma rua simpática, aberta e pacata, oxigenada e refrescada por uma panóplia de árvores onde predomina a Ginkgo biloba, mas onde também não faltam bordos (Acer sp.), tílias (Tilia cordata), hackberries (Celtis occidentalis) , liláses (Syringa reticulata) e freixos- americanos (Fraxinus pennsylvanica). | ||||
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Era um consolo abrir a porta da rua todas as manhãs e cheirar e ver aquele mar de verde de todas as tonalidades, formas e estatura. Uma pequena passeata levava-me ao Elmendorf, no 594 da Cambridge St, a tomar o meu expresso.