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in Visitas a Jardins
Confesso o meu handicap: se observo e me deixo levar pela emoção, não fotografo; se fotografo, não vejo nem me emociono. As coisas acontecem porque têm se acontecer. É o tempo que abre e fecha, que apresenta e guarda, o acontecer das coisas.
Dá-se o caso feliz de repartir as duas tarefas, observar e fotografar, de modo equilibrado. Faço-o de maneira que tenho que recuar, muitas vezes, ao mesmo sítio para fazer o que antes não acabara, pormenorizando fotograficamente uma visão mais global, ou captando fotograficamente o ambiente mais vasto e contextualizador de uma florzinha que, até aí, só tinha sido contemplada ao pormenor.
Mas este vai e vem paripatético da mente e do corpo tem a vantagem de agilizar uma e outro, que isto da idade tem mais que se lhe diga: tem o condão de criar neles depósitos indesejáveis de gordura.
E a gordura mental constitui um risco elevado para a saúde da percepção da realidade.
Este postal foi publicado inicialmente no sítio Visitas a Jardins e transferido para aqui em 2019-10-09 durante o processo de fusão dos dois sítios.
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in Visitas a Jardins
Não sou muito de planear as minhas visitas. Se acontece ter que viajar por qualquer motivo - antes era mais por necessidade de negócio ou de formação, hoje mais como acompanhante ou como lobo solitário - aproveito o melhor possível o facto de estar fora, ao descuido de antecipações, visitando parques e jardins.
Estas visitas são, geralmente, errâncias, um andar por aqui e por ali em que são as pernas e os pés, e não os olhos e os ouvidos, que descobrem os lugares e as suas maravilhas. Nelas sou apenas um perdido, uma consciência que se deixa ir na ignorância de como voltar. É no regresso a casa, no repouso das canseiras, que faço todos os planos do que fiz. Munido dos recursos da internet, procuro e comparo exaustivamente informação sobre os sítios onde fui, procuro dar sentido ao que vi, redescubro o que olhei e não vi, revejo notas e classifico fotografias que tirei e tento compreender o que registei.
De certa maneira, redesenho o itinerário ideal e parto mentalmente para a visita que faria cumprindo este meu plano a posteriori. E convido os meus visitantes (1) a fazer comigo esta viagem.
(1) Este postal foi publicado inicialmente no sítio Visitas a Jardins e transferido para aqui em 2019-10-09 durante o processo de fusão dos dois sítios.
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in Visitas a Jardins
Não quero criar uma impressão não conforme com o tipo de pessoa que quero parecer ser. Esta ousadia de manter um sítio (1) para revelar as minhas visitas a jardins por esse mundo adiante pode induzir a ideia, de facto muito fora da verdade, de que sou um viajante compulsivo. Pelo contrário, não sou muito de saídas.
Para mim, viajar é uma maçada. Ter que andar na autoestrada para ir a uma cidade perto, ter que suportar as esperas no aeroporto e o desagrado dos voos, é uma grandessíssima maçada. Para mim, pernoitar fora é um incómodo: por melhor que seja a residência ou o hotel, falta-me o conforto do colchão e das almofadas que, ao longo de anos, se me moldaram ao corpo, que fazem de certo modo parte dele, falta-me o reconhecimento automático dos lugares que albergam as pequenas comodidades do dia a dia, uma roupa adequada, um artigo de de higiene, ou qualquer coisa para trincar ou bebericar. Para mim, apequenar-me fazendo-me entender numa terra de outros por gestos e grunhidos, assassinando línguas que não são minhas, ficar na frequente incerteza de que fui razoavelmente compreendido, é uma tortura moral.
Prefiro pois ficar em casa, apoderar-me do lugar habitual, fixar raízes. Os meus instintos mais profundos e mais intensos são vegetais, o meu ser é da essência das árvores, com raízes profundas, com um tronco sólido e com ramos e folhagem projectados para a luz, fabricando as minhas próprias energias, e intertecendo sensuais carícias de néctares e pólens com insectos e aves.
Há alturas em que me metamorfoseio em animal e parto, exploro outros lugares, atravesso selvas urbanas povoadas de bestialidade, e, vergado pela fadiga dos aeroportos e pelo tédio dos hotéis, reconheço as minhas tendências, caio em mim e regresso. Chegado a casa, ao meu sítio, esfarelo a terra entre os dedos, cheiro o seu odor e sonho com a fusão final.
Sonho ser árvore, estender as minhas raízes para as entrelaçar com as raízes de outras árvores numa teia maior do que continentes cercando o mundo.
A procura do graal é para os imbecis dos metafísicos, como são quase todas as procuras. Nestes dois dias que são a vida cheiro o odor das rosas e acaricio o acetinado das suas pétalas antes de fenecerem. E isso é tudo o que um ser vivo precisa.
(1) Este postal foi publicado inicialmente no sítio Visitas a Jardins e transferido para aqui em 2019-10-09 durante o processo de fusão dos dois sítios.
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Não foram vários meses de silêncio e de vida claustral, foram vários meses de hibernação. O carro esteve tanto tempo parado que, certo dia, fui por ele e não pegou. No que me diz respeito, não é que me tenha falhado alguma funcionalidade biológica, mas comecei a considerar o corpo e a actividade física como abstractos, isto é desligados da sua materialidade. De certo modo, tinha recuado no meu tempo biológico àquela circunstância juvenil de quem vive na abstracção geométrica de uma cidade e na abstracção de uma agenda profissional. Mesmo fazer exercício físico é uma abstracção de exercício. Toda a realidade "real" se perde na hiper-realidade virtual dos jogos mentais que alimenta a contemporaneidade e a psicopatologia da presente era.
Ora, fora a isso mesmo que eu tentara fugir quando me retirei da vida da cidade para a vida do campo. Foi para reencontrar o corpo na sua materialidade, para reencontrar a terra, para reencontrar a vida e recuperar a realidade.
O Tremontelo e toda a actividade que lhe está associada proporcionam a satisfação desses quesitos. Mas, sempre que chega o Inverno, há mais vida de casa, o fastio da solidão que decorre na eternidade dos cinco dias úteis da semana, o silêncio assolador das árvores despidas, o sedentarismo e a compulsão a comer e a dormir a desoras.
Ontem não foi assim: choviscara durante quase todo o dia. À noite, depois do jantar, abri a janela cá de cima para deixar entrar um pouco de ar fresco, porque a casa, com todas as janelas fechadas quase todo o dia, tinha abafado. Veio-me um cheiro a terra húmida tão intenso que me enebriei. O perfume das rosas descobri-o depois, a subir em espiral. Tomei um banho frio antes de me deitar. A água quente fora desperdiçada em lavagens e não houve tempo para o escasso sol repor o nível térmico do depósitos. Deitei-me experimentando todos os meus sentidos, inclusive a audição do concerto de melgas, e comecei a expurgar as minhas entidades conceptuais. A realidade, finalmente, voltou.
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Não é por falta de outros assuntos sobre que pensar. Há-os, e há-os de mais. Basta ver o estado calamitoso em que está este nosso mundo, a falta de alternativas credíveis para este nosso país e os contextos desta nossa vida, os nossos, os das nossas famílias e os dos outros. Mas o assunto que realmente me tem dado tantas voltas, quer à cabeça, quer ao estômago, é o mundo. Sim, o mundo.
Entre a sua criação e o seu fim, o mundo de alguém é o lugar da sua passagem e está inexoravelmente associado ao curso do tempo e ao fluxo da sua consciência. Na idade média, mundo e século correspondiam-se, eram o mundo das coisas humanas e temporais cá de baixo, contraposto ao mundo das coisas divinas lá de cima. "Mas Ele seguiu dizendo-lhes: “Vós sois daqui de baixo; Eu Sou lá de cima. Vós sois deste mundo; Eu deste mundo não sou. " (João, 8,23)