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Já houve tempos em que havia Verão. Nos dias de hoje, em que os desgovernos da nossa língua o minimizaram, pouco mais tem do que o nome. E, para quem tem memórias, e vive longe dos fogos postos, um nome minguado de significado. De resto, a vida continua. E continuaria, lenta e cheia de rançosa monotonia, não fossem os mais jovens continuamente nos prodigalizarem de preocupações e percalços, os tais cadilhos que abalam o edifício das emoções, já de si tão frágil, e minimizam o cabedal, de si já tão escasso. Hoje trata-se dos seus em idade em que era suposto ser-se por eles tratado. Já não há tempo para ser velho, vive-se em trabalhos forçados de meia-idade, em que a jovialidade e a frescura de ideias se habituaram a conviver com o reumatismo e as outras dores do corpo e da alma.
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Eu sei que hoje foi um dia cansativo de não fazer nada. Dizendo melhor: que ontem foi um dia cansativo de fazer nada.
"Melhor" não quer dizer "mais bom", quer antes dizer mais acertado com os relógios e os calendários. Caso contrário, não estaria hoje a ser hoje ainda em continuidade com o longo e cansativo dia em que não fiz nada. Não fazer nada é uma maneira utilitarista de dizer, fiz mesmo muitas coisas que não serviram para nada. Lá servir, serviram, mas foi apenas para miúdos fins, coisas de pouca monta que, somadas, deram uma grande canseira. Que, se não tivessem acontecido, não se daria por falta delas. Em vez de fazer o almoço e o jantar, e de ter lavado a loiça, poderia ter ido ao restaurante. Mas não. Teimei em ficar o dia a ver os outros a trabalhar, a assistir às conversas que se deve ter quando se está a trabalhar, a persistir em conversas de que não somos parte, apenas somos apanhados por elas como árvores arrancadas ao solo pelo vento. O dia passamo-lo a assentar o corpo, ora numa perna, ora noutra. E, quando nos deitamos, damo-nos conta de que o passámos todinho a moer os discos intervertebrais, tal é a má disposição, tais são as dores, o incómodo da falta de posição, um sei lá quê de mazelas. É aí que o dia não passa, continua pela noite adentro, uma noite cansativa de não fazer nada, com a mudança apenas de o corpo passar da vertical para a horizontal e o dia do claro para o escuro.
Pois bem, o corpo dói na mesma antes e depois de accionar o interruptor do candeeiro. Mas as dores doem mais na consciência no escuro, que a consciência não se distrai tanto. E as dores do corpo misturam-se com as dores do eu, que é isso que torna aquelas insuportáveis. Para fugir a tanta dolência, acendo o iPad como quem abre um livro. O eu fica agarrado ao pequeno rectângulo de luz. É disso que ele gosta, de rectângulos iluminados. O corpo continua a doer, mas de uma dor que já não dói tanto, que quase não dói. A consciência, agora, ocupa-se das "dores de alma", das preocupações, que não são as ocupações de que nos prevenimos criando soluções virtuais para os problemas que temos, ou julgamos ter, ou não temos mas azinha os teremos.
É impressionante a tralha que vem à consciência no escuro da noite, tirando aquele remendo nos fundilhos da noite que é um pequeno rectângulo de luz. Vem em catadupa e é difícil de apanhar, uns rasgos aqui, outros ali. Parece o lixo que se levanta e remoinha no ar impulsionado por uma rajada de vento. Pedaços, papelinhos rasgados, fragmentos do caderno diário cheio de frases incompletas com sentido, cheio de frases completas sem sentido. A gente esbraceja a apanhar um pedaço aqui, outro ali, sabendo que não vale a pena juntá-los. Eles passam em sucessão e nós chamamos a isso o tempo. Como podíamos chamar qualquer outra coisa. Também chamamos tempo a outra coisa, que é estar chuva ou a sorrir, estar ensolarado ou húmido.
Depois, começa tudo a baralhar-se. E quando eu for desligar o iPad e pousá-lo na mesa de cabeceira
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Daqui mando este postalito para anunciar que estou em processo de mudança. O URL do blogue no novo domínio é:
Agradeço uma visita e um comentário breve. Este é o último postal neste blogue do blogspot.
Adenda:
O meu sítio "O Portal Das Angiospérmicas" já está online em:
http://www.portal.tremontelo.pt/
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No meu modo de ver as coisas, a espécie animal a que pertencemos, a espécie homo sapiens, criou ao longo da sua história uma supra-realidade, uma realidade-bolha, que transborda a sua realidade material e biológica: a 'humanidade'. A humanidade, como a entendo, não é a espécie biológica, mas uma camada virtual que envolve o substracto biológico com os produtos mentais elaborados nos e pelos cérebros individuais nas suas trocas nos ambientes físico e social. A humanidade assim entendida, não é uma 'coisa' imutável, forjada sub specie aeternitatis: a humanidade do humano é, em sentido colectivo, uma projecção para toda a espécie humana, portanto sempre inacabada, sempre em processo; e, em sentido individual, nem uma vida chega para compreender o que há de humano no presente de cada um de nós, que está aquém e além de cada um de nós.
A humanidade transborda, assim, tanto a espécie como o indivíduo e afecta a realidade 'exterior', humaniza as coisas-em-si em coisas-para-nós. Tudo à volta é humanizado: a paisagem, os lugares, os seres. O mundo é a casa (domus, domui) da 'humanidade' e todos os seres abrangidos pelo mundo são seres domésticos: as matas, as árvores de fruto, as plantas hortículas, os jardins, o gado, os cães, os gatos, as pulgas e os micro-organismos que nos fazem viver e morrer. Cada vez mais domesticados, cada vez mais humanizados. "Tudo está cheio de deuses" como teria afirmado Tales de Mileto.
Esta evolução foi operada, em larga medida, na era que se convencionou chamar a 'revolução do neolítico' e "das civilizações dos grandes rios", o período da evolução humana em que foram inventadas a agricultura e as cidades. Desde essa altura, os seres humanos têm aprendido a distinguir entre o que surge espontânea e naturalmente na natureza, as entidades naturais, e o que surge por artifício e cultivo praticados pelo homem e os seus utensílios-máquinas, as entidades artificiais ou culturais. A agricultura é, segundo a etimologia latina, a cultura do campo (ager, agri). Esta actividade de cultivo (colo, colere, colui, cultus) transforma os seres naturais, que se apresentam no estado selvagem, na selva, na estepe, no deserto, no mar, em seres cultivados, nos campos lavrados, nas pastagens, nas matas, nas hortas, nos jardins, nos pomares, nos viveiros e nas estufas. Inseparáveis da agricultura, nasceram as cidades, resultantes provavelmente da necessidade de congregar esforços, reforçar os laços cooperativos e de solidariedade ensaiados no período anterior de recolecção, de organizar a coesão social e a divisão das tarefas, de educar (ou cultivar) os mais jovens (puericultura, pedagogia) no sentido de uma maior integração e de subordinação das pulsões individuais aos interesses do grupo (civilidade, democracia). As cidades viviam ao lado das culturas e eram centros de organização, de trocas, de aprovisionamentos e de ofícios.
A revolução industrial das últimas centúrias introduziu uma cisão no conceito de 'cultura', separando o 'campo (ager, agris; rus, ruris)' da 'cidade' (urbs, urbis) e dando origem à oposição cultura rural-cultura urbana. A cultura urbana foi caracterizada como sendo moderna em oposição às culturas antigas ou clássicas. Foi a era do comboio e dos paquetes que nos traz a lembrança de textos literários maravilhosos como a Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz. Mais tarde o carro a motor, as autoestradas e o avião levaram à desertificação progressiva das aldeias, às migrações em massa, internas externas, e à consolidação das magalópoles. A desertificação dos campos e as grandes desflorestações levaram a agricultura a converter-se em agro-indústria, muitas vezes com contornos criminais.
Recentemente, a revolução digital operou a cisão, talvez não a derradeira, entre o 'real' e o 'virtual'. É cedo para fazer a avaliação deste caminho da humanidade. O balanço aponta provisoriamente para um desequilíbrio que favorece a "humanidade" contra o homo sapiens, os deuses contra a natureza, o jogo contra a acção e o global contra o local. A evolução não pára, continuará aqui ou noutro lugar. Mas para nós poderá ser apocalíptico (alguém disse que este século será o século de deus e há sinais preocupantes que bem poderá sê-lo). Redescobrir o campo é a nova liturgia, a liturgia antidivina, o novo culto da natureza e do regresso às origens, mesmo que envoltos em mitos. Porque o mito, a palavra poética-pensante, é a última, e provavelmente a única, maneira de humanizar o desumano da "humanidade".
ANÚNCIO:
Está parcialmente disponível, a partir de agora, o meu Portal das Angiospérmicas. Quem quiser ter acesso completo deve, primeiro, registar-se.
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AS CLASSIFICAÇÕES
A importância de um nome comum ...
Quando ando pelo campo e, por qualquer motivo, uma planta me prende a atenção, a primeira coisa que eu vou querer saber é como se chama essa planta. Não o nome daquele indivíduo concreto, obviamente, mas o do grupo ou classe a que pertence. Não me ocorreria nenhuma razão para dar um nome a esta rosa concreta, ao contrário do que faço com os gatos que são indivíduos e com quem estou familiarizado, mas sei que ela é, pelas
suas características únicas, não a rosa, mas uma rosa. Sei que uma pera é uma pera e que uma maçã é uma maçã. Rosas, peras e maçãs são plantas com características muito diferentes e os nomes ajudam a sublinhar e a recordar essas diferenças. Porém, quando oiço falar de uma certa flor pelo seu nome e não associo esse nome a qualquer das flores que eu conheço, podem dar-se vários casos: ou conheço a planta sem nunca ter aprendido o nome, ou conheço a planta mas por um nome diferente, ou reconheço o nome como sendo de uma planta mas nunca vi a planta ou uma representação sua, não sabia de todo que havia uma planta com esse nome.
Mas um nome comum não basta ...
Como já referi, uma planta pode ter vários nomes populares. Também acontece um nome corresponder, para diferentes pessoas ou em diferentes regiões, a plantas diferentes que nada têm a ver umas com as outras a não ser devido a semelhanças de forma ou cheiro superficiais. Isso acontece por variadas razões: em alguns casos, devido a ignorância, as pessoas podem atribuir a uma planta, cujo nome desconhecem, o nome de uma outra que se lhe assemelhe; em muitos casos, o nome da planta muda de uma região para outra ou mantém-se, mas com uma fonia ou grafia ligeiramente modificadas; às vezes, as características distintivas da planta são insuficientemente conhecidas ou reconhecidas para um entendedor poder classificar a planta e atribuir-lhe correctamente um nome.
Os animais que se agitam como loucos ...
Os animais dividem-se em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) amestrados, d)leões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães soltos, h) incluídos nesta lista, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) etc, m) que acabam de partir o jarrão, n) que de longe parecem moscas |
Jorge Luís Borges, "O idioma analítico de John Wilkins", Prosa completa, vol. 3, pag.111.
O para quê de uma classificação.
O estabelecimento de classificações visa, por um lado, favorecer o reconhecimento de entidades, como disse acima, e, por outro lado, agrupá-las em conjuntos lógicos que facilitam a compreensão das suas propriedades e a memorização da sua multiplicidade. Parodiando Borges, poderia dizer:
As plantas dividem-se em a) pertencentes ao Sítio do Tremontelo, b) de plástico, c) envasadas, d) rosas, e) árvores das patacas, f) esplendorosas, g) ervas daninhas, h) incluídas nesta lista, i) que dançam com o vento, j) inumeráveis, k) desenhadas com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, l) etc, m) que acabam de rachar o vaso de barro, n) que de longe parecem cabelos |
A classificação é um processo cognitivo natural resultante da actividade normal do cérebro humano (e, provavelmente, de outros cérebros animais). No ser humano adulto, as classificações culturalmente produzidas estão intimamente relacionadas com o vocabulário. O processo é realizado em várias etapas:
• O primeiro passo consiste em isolar (abstrair) características ou propriedades relevantes, como a morfologia das plantas, funções, número e cor das pétalas, composição química, lugar, época do ano, duração, e usar apenas essas.
• O segundo, em agrupar em classes exclusivas as entidades com as mesmas propriedades (o que não é o caso da classificação de Borges citada acima!).
• O terceiro passo, estabelecer o sistema de classificação, ou seja interligar todas as classes entre si a partir de um critério qualquer que se julgue válido. Por exemplo, estabelecer um número mais reduzido de classes genéricas que incluam as classes mais específicas. Uma classificação é, como a disposição de livros numa biblioteca em armários, estantes e prateleiras, ou de ficheiros electrónicos em directorias e 'drives', uma forma de organização que permite identificar um grande número de identidades e recordar as principais propriedades que definem cada uma.
As classificações científicas.
A forma mais cómoda de classificar entidades com centenas de milhares de tipos diferentes é recorrer a uma classificação científica. Uma classificação é científica quando é organizada de acordo com uma metodologia científica e com os saberes científicos dessa área.