postal enviado por Rui Fernandes
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Veio o tempo seco e com ele o apetite para amanhar a terra. O problema tem sido as temperaturas negativas durante a noite (cheguei a acordar por volta das sete com a temperatura no exterior a -5ºC e a paisagem coberta de geada).
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Dizem-me que escrevo demasiado a ponto de matar de tédio os meus leitores. Confesso-me culpado dessa acusação. E devo uma explicação: na vida, que entendo ser uma mão cheia de nada, só interessam os pormenores. E é porque há alguns, bons e maus, que excitam a minha atenção, respondo escrevendo sobre eles. Se sai curto, entendo que é punheta: esfregar abrasivamente o membro (mental) até jorrar uma breve cuspideira de palavras. Gosto que saia longo, profuso, demorado, com refrão, como no sexo tântrico. Assim, com palavras, devolvo à vida, que é a eternidade num instante, a atenção que merece.
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Nesse afã de dar vida aos detalhes não há exigência maior do que esta de dar voz àquilo que não a tem: o silêncio.
Não me refiro ao silêncio cósmico. Se a nossa imaginação mergulhar nas profundezas do real verá um número incontável de esferas rodando sobre si próprias ou cirandando em torno umas das outras; se recuarmos para um ponto de visão afastado e ensombrecido, essas gigantescas esferas convertem-se em grãos de pó quase invisíveis mas, agrupando -se, nas massas leitosas que sabemos ser galácticas. E a todos estes objectos celestes vemo-los a girar encaixados uns nos outros como rodas dentadas engrenadas umas nas outras. E a experiência das coisas mecânicas do nosso dia a dia leva-nos a crer existir aí, para uns uma ensurdecedora e tonitruante cacofonia, para outros, mais crentes numa ordem pre-estabelecida, uma harmonia celestial. Mas isto não é música, é poesia. O universo é importando-lhes as deixasmudo. E mais: é surdo.
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O verão instalou-se novamente nos anos da nossa vida, mas, desta vez, veio acompanhado de tempestades tropicais. Estação a suceder-se a estação, simulacro de Via Sacra. Nada acontece: Ontem, o encontro de velhos companheiros de empresa. Já extinta como pedem os tempos, não fora a lembrança que a retirou dos escombros. As empresas nada são, apenas marcas. As pessoas empreendem, fazem-se coisas, a obra aparece. Depois há os tiques de cada um. São como vozes que procuram concertar. Dá-se a isso o nome de cultura de empresa. O que sobra, ao fim de alguns tempos, são sempre e ainda os tiques de cada um que, no reencontro, esperamos confirmar. Porque nada de novo acontece. Hoje, o mundial, a desesperante humilhação de um país que teima em pensar-se grande na teimosia da sua pequenez. Chovera, quase toda a manhã. É mais que certo que, amanhã, choverá. E nesta certeza de que o tempo vai ser incerto, é tempo de nos adaptarmos às incertezas dos tempos que virão.
Em trânsito por Lisboa, a 22 de Junho.
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As coisas são, mas não existem; o homem existe, mas não é: projecta-se. As coisas são e não o sabem, e o ser das coisas só se revela na abertura, na exposição que é o existir humano. O existir humano cuida das coisas no seu ser, é o seu jardineiro. A essência do existir é o tempo. O tempo traz as coisas à presença do humano e fá-las perdurar na memória. A fala, bem como a escrita, introduz a narrativa nas existências e confere-lhes identidade. O idêntico pode afirmar vezes sem conta " eu sou aquele que sou" e cobrir a sua face com múltiplas máscaras, e descrever múltiplas facécias e experimentar todo o tipo de cenários e vestimentas. A História é uma rede de autobiografias, a Actualidade o seu palco. E a contínua representação retorna eternamente as coisas à sua essência.