postal enviado por Rui Fernandes
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Veio o tempo seco e com ele o apetite para amanhar a terra. O problema tem sido as temperaturas negativas durante a noite (cheguei a acordar por volta das sete com a temperatura no exterior a -5ºC e a paisagem coberta de geada).
Não que me arrefeçam, que, para remédio, há os edredãos e as mantas, mas porque me obrigam a madraçar durante a manhã, em diversas e aprofundadas leituras. Nestas alturas, o meio dia não é o fim da manhã mas o seu prolongar na rua. O almoço só pode vir muito depois, se o pequeno foi tardio e reforçado, e há que aproveitar o calor abrasador do sol enquanto não esmorece. Após o almoço, quase por volta do pôr do sol, fechar as janelas exteriores para não deixar escapar as ondas eletromagnéticas para as estradas alcatroadas da noite, e preparar a salamandra. O dia lá fora acabou e agora vai recomeçar cá dentro, com trabalhos domésticos, pequenas reparações e muita leitura.
Dou-me conta que, os livros que adquiri nestes últimos anos, não vou ter tempo para ler deles senão uma pequena parte. Tive quinze anos para os adquirir e não vou ter quinze anos para os ler. Agora, estou muito seletivo. Na literatura, para os autores que, em diferentes fluxos e refluxos de consciência, diferentes temperos de sentimentos e emoções, diferentes simbolizações arrancadas das memórias autobiográficas e da história coletiva, abordam a identidade e a alteridade do eu e as projetam na sua cidade: Pessoa (e as suas pessoas), Joyce, Kafka, Pamuk, Proust. Nos domínios da história, da espiritualidade, da filosofia, da física, da biologia evolutiva e da ciência cognitiva, os meus interesses centram-se em várias infeções virais da consciência: a Pessoa, o Mundo, Deus, a Sociedade, a Cidade, a Economia, o Ambiente, a Crise, a Decadência. A lista não é exaustiva e vai-se recompondo há medida em que revejo e retoco as notas para o meu livro sobre a consciência e a emergência dos valores de ordem superior, o livre arbítrio e o suicídio. Novas conclusões absolutamente espantosas das releituras de Damásio, Chalmers e Metzinger, de Espinosa, Nietzsche, Heiddeger, Arendt e Onfray, de Darwin e Dawkins, e de muitos outros. A leitura simultânea permite alinhar ideias que antes desfilavam em fileiras separadas. Surgem ideias, novas não, mas recentes, como as antigas galáxias que só agora se dão a ver porque a luz que irradiaram passou ziliões de anos a atravessar o universo para vir até nós. A minha pesquisa prossegue com a leitura dos textos sagrados (se reconhecidos como tais), ou de meros documentos históricos, que evidenciam os mecanismos (neuro)cognitivos da criação de deus e o seu papel estruturante das civilizações históricas fundadas na agricultura e urbanização, e a forma como se apoderaram dos nossos cérebros e os infetaram.
A noite chega sempre sorrateira e demasiado cedo para o cérebro exaltado. Que se abandona num qualquer sofá para só acordar nas vésperas da madrugada a tiritar de frio e a pedir a cama.
Agora, a chuva regressou, uma humidade rala e ensombrada. Os ritmos são outros, mais adentrados na casa, a apetecer escrever.
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Dizem-me que escrevo demasiado a ponto de matar de tédio os meus leitores. Confesso-me culpado dessa acusação. E devo uma explicação: na vida, que entendo ser uma mão cheia de nada, só interessam os pormenores. E é porque há alguns, bons e maus, que excitam a minha atenção, respondo escrevendo sobre eles. Se sai curto, entendo que é punheta: esfregar abrasivamente o membro (mental) até jorrar uma breve cuspideira de palavras. Gosto que saia longo, profuso, demorado, com refrão, como no sexo tântrico. Assim, com palavras, devolvo à vida, que é a eternidade num instante, a atenção que merece.
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Nesse afã de dar vida aos detalhes não há exigência maior do que esta de dar voz àquilo que não a tem: o silêncio.
Não me refiro ao silêncio cósmico. Se a nossa imaginação mergulhar nas profundezas do real verá um número incontável de esferas rodando sobre si próprias ou cirandando em torno umas das outras; se recuarmos para um ponto de visão afastado e ensombrecido, essas gigantescas esferas convertem-se em grãos de pó quase invisíveis mas, agrupando -se, nas massas leitosas que sabemos ser galácticas. E a todos estes objectos celestes vemo-los a girar encaixados uns nos outros como rodas dentadas engrenadas umas nas outras. E a experiência das coisas mecânicas do nosso dia a dia leva-nos a crer existir aí, para uns uma ensurdecedora e tonitruante cacofonia, para outros, mais crentes numa ordem pre-estabelecida, uma harmonia celestial. Mas isto não é música, é poesia. O universo é importando-lhes as deixasmudo. E mais: é surdo.
Aqui no Tremontelo reina o silêncio. Não que não haja sons. Por exemplo, ao longe, para nordeste, ouve-se o ruído do motor de uma máquina agrícola. É o silêncio que permite ouvi-la, de outra forma estaria mascarada por detrás de outros sons que se lhe sobrepunham e a incorporavam. À minha direita, num sobreiro enorme, um pássaro qualquer ensaia os seus trinados de uma forma tão meticulosa como a de quem esfrega os dentes à escova. Na rotunda dos cedros, em cima do carvalho em tempos mutilado pela tempestade, outro executa um solo policromático com a seriedade de um performer operático. Um pouco por todo o lado, a passarada assiste-lhes as deixas. O galo faz intervenções esporádicas. A abelha ciranda na sua azáfama zumbindo. As moscas mantêm aquele barulhar chato e irritante que desperta em automático o chicotear das caudas das vacas. Tudo isto é silêncio, nada perturba o trabalho, nada desvia a atenção, a irresponsividade é tão grande que chega a dar em sono.
Eis que, de súbito...
Isto é, claro, uma frase desgastada, sem um sentido reflectido, que tem um papel análogo ao das frases feitas musicais dos filmes de terror da terceira divisão: preparar o susto. O que resulta: uma vez o susto preparado, a pessoa assusta-se porque foi preparada para se assustar. A nossa política doméstica está cheia destas coisas. Frases ocas, polidas à superfície. Ver a retórica de Passos Coelho, um clássico de marketing político cheio de estilo. Este prepara o susto e logo o alívio. Às pessoas dá-lhes aquele baque que suspende a respiração e põe o coração a badalar à doida. O sofrimento sente-se. Não é logo claro, sê-lo-á brevemente, nas contas, no cheque mensal. Quando há, claro. Depois o alívio. É a economia que está a melhorar e mostra-se os pequenos incrementos, ocultando o fenómeno de bola de pingue-pongue que saltita quando bate no solo e vai esmorecendo até morrer. São os mercados que concertadamente baixam os juros dizendo que somos dignos de crédito, ou quase, o tempo o dirá. E afiam a dentuça para a enterrar no pescoço da vítima. Mas alívio virá, está prometido, como o Messias, o D. Sebastião ou o Armagedeão. É complicado saber para quando, é uma questão de datas e é preciso saber interpretar os números, ou é uma questão nublosa e é preciso dominar a previsão meteorológica. A economia não é uma ciência certa, é uma arte de extorsão certeira.
Eis que, de súbito...
O silêncio desfaz-se, a atenção dissolve-se, o ouvido apura-se. É preciso recompor o corpo na cadeira, é preciso desviar a cabeça na direcção que nenhuma decisão autónoma impôs. De súbito, um barulho, apesar de diminuto, um barulho, a recusa gratuita e ostensiva do silêncio. Olhei, claro, e vi. Duas folhas secas de sobreiro rodopiavam ao vento no chão do alpendre. Pareciam loucas, um casal apaixonado ou em transe místico, mas claramente que seguiam cegas a ordem natural das coisas, sem emoções, sem sentimentos, sem desígnio próprio ou alheio.
A Farrusca deve ter sentido a minha inquietação. Despegou do sono metafísico a que se vota por tempos prolongados, veio sorrateiramente na minha direção, esticou a cabeça para a afagar e começou a ronronar.
Voltei ao trabalho, a Farrusca ao seu poiso e o silêncio reinstalou-se.
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O verão instalou-se novamente nos anos da nossa vida, mas, desta vez, veio acompanhado de tempestades tropicais. Estação a suceder-se a estação, simulacro de Via Sacra. Nada acontece: Ontem, o encontro de velhos companheiros de empresa. Já extinta como pedem os tempos, não fora a lembrança que a retirou dos escombros. As empresas nada são, apenas marcas. As pessoas empreendem, fazem-se coisas, a obra aparece. Depois há os tiques de cada um. São como vozes que procuram concertar. Dá-se a isso o nome de cultura de empresa. O que sobra, ao fim de alguns tempos, são sempre e ainda os tiques de cada um que, no reencontro, esperamos confirmar. Porque nada de novo acontece. Hoje, o mundial, a desesperante humilhação de um país que teima em pensar-se grande na teimosia da sua pequenez. Chovera, quase toda a manhã. É mais que certo que, amanhã, choverá. E nesta certeza de que o tempo vai ser incerto, é tempo de nos adaptarmos às incertezas dos tempos que virão.
Em trânsito por Lisboa, a 22 de Junho.
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As coisas são, mas não existem; o homem existe, mas não é: projecta-se. As coisas são e não o sabem, e o ser das coisas só se revela na abertura, na exposição que é o existir humano. O existir humano cuida das coisas no seu ser, é o seu jardineiro. A essência do existir é o tempo. O tempo traz as coisas à presença do humano e fá-las perdurar na memória. A fala, bem como a escrita, introduz a narrativa nas existências e confere-lhes identidade. O idêntico pode afirmar vezes sem conta " eu sou aquele que sou" e cobrir a sua face com múltiplas máscaras, e descrever múltiplas facécias e experimentar todo o tipo de cenários e vestimentas. A História é uma rede de autobiografias, a Actualidade o seu palco. E a contínua representação retorna eternamente as coisas à sua essência.
Os quatro petizes cabriolam infantemente quando lhes disponho as papinhas. Agora já me espreitam a um, dois metros de distância, mascarados por detrás de um qualquer semi-obstáculo visual. Rabo escondido com gato de fora, ironizo. Chocalho ruidosamente as apetecidas pepitas no saco de papel plastificado. Antes, fugiam a sete pés os sete-vidas. Agora, já se vão pavlovianamente salivando e aproximando. São seis horas, ainda está frio e não parece que se vá cumprir a previsão de chuva dos metereologistas. Pode ser que me engane! Mas a possibilidade de um engano dá o colorido das nossas vidas e o poder de continuar a dar palpites.