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A gata tinha duas preocupações no que respeitava à cozinha. A primeira, óbvia como se verá, consistia em proporcionar a cada membro do acampamento uma alimentação adequada às necessidades diárias de cada um sem pôr em perigo a reserva de recursos estimada suficiente para os dois dias seguintes. Competia a outros a reposição do armazenamento de água, lenha, alimentos e condimentos. A segunda, por mais estranho que pareça, era a de manter todos afastados da área da improvisada cozinha garantindo-lhe a exclusiva soberania sobre um domínio que a enchia tanto de prazer como de prestígio.
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Era um livro em segunda mão. Depois, passou por outra, e outra, e outra mão. Às tantas andava nas mãos de toda a gente. Depois passou de boca em boca e acabou por andar nas bocas do mundo.
Etiquetas: PROFANORUM BIBLIORUM EJACULATIO PRECOX
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Era um modesto livro de culinária de um género de segunda, da chamada "comida do mundo". Sempre aspirara a ficar próximo das masterpieces da arte. Mas a tal não lhe chegou o engenho. Agora, esquecido na mais elevada prateleira das imensas estantes da biblioteca, no local dos ditos livros práticos onde a coruja se alcandorava às vezes a piar, murchavam-lhe as entranhas de raiva e de comida requentada. Aproximou-se da beira, fechou os olhos e entregou-se.
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Andamos nisto...assim, os sintomas à mostra, às vezes uns lampejos de felicidade / imbecilidade, tudo indiscernível, o dia-a-dia a conta-gotas, a sabedoria das horas negras, sabor a óleo nas engrenagens da mente, a inquietante separação e o mútuo afastamento do aqui dentro e do lá fora, a saudade e o desejo do músculo dorido na contracção do trabalho da terra, o bate-bate da drogaria nas sinapses da vida ... tudo muito sem sentido, tudo não sentido.
Lá fora parou de chover, mas continua a haver noite, desfilam ricaços na passerelle do Forbes e a crise não desampara a loja. As Parcas também o são, a crise chega a todos. Nona tece o tecido e a textualidade da vida, Décima a luxúria. E a Outra espera, diz-se que tem a tesoura de Occam e que um dia há-de cortar o fio, a eito, como se tudo fosse erva daninha.
Os filhos da geração rasca são uma geração à rasca. Pudera! Pior é ser ceifado na idade das promessas, como os jovens líbios, com os olhos marejados de areia e pó do deserto. Talvez sim, ou talvez não. A indecisão é a única garantia de acertar com a verdade, o acerto involuntário.
Eram cinco como nós, os corpos alinhados guardavam as suas ausências. Afogados no Tejo, tínhamos dez anos. Ouvi falar, pela primeira vez, de eças. Para mim, Eça era o Queirós, que ainda não tinha lido mas de quem se falava muito. Li-o mais tarde, vezes repetidas, um dos poucos que me acompanharam vida fora, como o Aquilino e o Bernardo, os de cá.
Lá fora há temperatura, não sei se quente, não sei se fria. Cá dentro, só sei que há temperatura lá fora.
Naquela noite de processão de corpos, de vigília de mentes atemorizadas, despertou-me a puberdade. Descobri as borbulhas e os pelos que despontavam no espelho todas as manhas, passadas as erecções espontâneas, os lençóis amarfanhados e os sonhos desconexos em noites infindas. Andávamos à rasca e não sabíamos ainda que éramos uma geração.
Os jovens líbios lutam por ideais e morrem para nada. A morte não deixa nada. A gente morre e leva o mundo todo connosco.
Da minha janela vê-se o que há lá fora. Eu não sei se o que vejo há lá fora, mas vejo como se houvesse lá fora. Ver é como falar: a gente diz palavras e tudo começa a existir, mesmo sem a gente saber se o que diz existe. Aliás, ser, estar, haver, existir, permanecer são palavras que dizem o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece. Mas sem sabermos se o que é, o que está, o que há, o que existe e o que permanece, é, está, há, existe ou permanece.
Andemos nisto, pois ...
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Tenho uma mania que me vem da infância: gosto de cartas do correio. Não daquelas de obrigação, que se manda a intervalos regulares para as pessoas certas, que nos esperam nos lugares certos ou nos recetáculos certos, não! São as que nos fazem subir todos os dias a rua a esperar o carteiro e alimentam aquela incerta esperança se hoje há alguma coisa para mim. O carteiro é o incontornável da esperança e da conformação. A gente sempre se conforma porque amanhã há outros dias, tem sido sempre assim. E o carteiro tem a sabedoria que recebe e distribui da mesma forma como recebe e distribui cartas. É a sabedoria da atenção aos sentimentos. Mas o carteiro já há muito tempo que não vem: foi tragado pela tecnologia do correio eletrónico.
Hoje a espera - a que felizmente ainda há - deve-se às fragilidades da tecnologia: tempo de processamento e quantidade de memória. Mas a espera é retórica. Cartas eletrónicas lá chegar chegaram. São aqueles títulos a negrito, sinal de que não foram lidas, provavelmente cartas das "novidades" comerciais, a anunciar fabulosas oportunidades. Morreu a espera porque exagerou a superabundância. Estar ligado já não é virtude, é vício.