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Como as folhas do plátano do Tremontelo que tremeluzem ao mais pequeno sinal de brisa e se desprendem, rodopiam até estabilizarem depositadas no chão. Se não se atenta bem, dá a impressão de se encher o plátano de passarada em divertida algazarra. Não é esse o caso, é apenas a festança alarve do folherio em trepidação fractal.
Vai longe o tempo das últimas cartas de correio. Chamam-lhe os saxónicos de terras de sua majestade o snail-mail, a correspondência a passo de caracol, em despropositada oposição a este correio que é de correr, de cavalos que se revigoram nos postos, e por isso se chamava postal. Postar hoje é outra coisa: é carregar num botão que tem escrito "enviar". E aquilo lá se perde no espaço virtual para reaparecer no outro canto do mundo, tão longe como aqui ao lado, retomando a forma original e, talvez, o sentido.
Pois há bem mais de um ano! A fidelidade aos lugares não é garantia do retorno, é apenas uma condição da saudade. Na era da globalização neoliberal, o eu precariza-se e migra. Somos tão migrantes que até emigramos de nós próprios. E somos enviados mundo fora como se fossemos cartas circulares. Tombamos como folhas no outono da História.
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Vou muitas vezes ao Tremontelo só a ver do correio. Ausências prolongadas levam à pronta saturação da caixa. A gente abre-a e atrás da portinhola vem um atropelo de cartas, de avisos, de papelinhos de ofertas de trabalho e toda a inutilidade de panfletos do Continente, do Aki, da Staples, do Mestre Mako, do Pingo Doce e de todas as catedrais e capelas do consumismo escalabitano. É uma trabalheira a separação da papelada em dois molhos no outro assento do carro. Depois, o acartar para o contentor azul. E vai-se tornando hábito!
O que mais me assusta são os avisos, sobretudo quando vêm das Finanças, agora promovidas a Autoridade Tributária. É um sobressalto que dura todo o fim de semana porque a carta só pode ser levantada na segunda-feira. Há dias recebi um aviso de outras proveniências, de uma sigla imprecisa e desconhecida. Segunda feira de madrugada, fiz a barba, duchei-me e desenfrasquei a colónia para cima do corpo, vesti roupa de ir lá fora, ao mundo, e pequeno-almoçado me fiz à estrada até ao edifício da Junta onde funcionam os correios. Conversa do costume, que é de circunstância, que assim e assado, que dá e que tira, e o tempo que está, a saída para a crise que não tem saída, e o desgoverno do Governo, a lata deles - porque é esta a condição do ser humano: não ficar calado quando se encontra outros seres humanos mesmo que não haja nada para dizer porque falar não é comunicar, é apenas humanizar e o melhor que há a dizer é redizer o que já está dito como desfiar avé-marias no rosário de contas. A dizer ou a ouvir, a gente estende o papelinho sem dizer nada porque as senhoras já sabem que é para levantar. Antigamente pediam o bilhete de identidade e assinávamos em dois sítios que tinham as cruzinhas que as senhoras punham para a gente saber onde assinar. Para meu espanto desta vez a coisa não foi assim: deram-me um papel com quatro letras e três algarismos, tudo garatujado, distorcido e misturado de modo que não fizesse sentido algum, e pediram-me para copiar num determinado lugar no aviso. Fiquei para ali especado, sem noção do tempo em que fiquei assim. A menina dos correios disse-me com um sorriso que parecia gentil: "é para termos a certeza de que não é um robô".
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in O Lugar e os Monos
O aparecimento e a evolução da vida é um feito único e irrepetível de desafio à improbabilidade. Dizer "vida" é uma maneira de falar, pois tal coisa não existe. O que há são organismos vivos, que para se manterem nessa qualidade de vivos têm que se desenrascar, e, se o são, são-no por pouco tempo. A morte, a velhinha andrajosa com a gadanha na mão, é uma prosopopeia. Se a vida é organização é organização precária, pois cedo dá lugar à desorganização, ao retorno ao estado mineral.
Foi bom rever os gatos no tremontelo e o mano rui em lisboa. Contaram-me do relvas, a maior anedota do século. Deviam fechar todos os livros do eça num cofre forte. É que sai de lá cada personagem!
rodrigo rodrigues, "perditus", algures na lusitânia
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Escrever não é o meu forte atualmente. Até aqui, escrevia cartas que enrolava no interior de uma garrafa que lançava ao imenso mar da blogosfera. É aquela ideia muito antiga de que há, no infinito do universo, criaturas inteligentes capazes de decifrar os nossos sinais e suficientemente conscientes para entender os nossos gritos de alma. As minhas cartas destinavam-se a desconhecidos bem mais perto, situados na infinitude da nossa proximidade. Mas, ao ponto a que isto chegou, escasseiam os singulares humanos capazes de edificar um lugar nas suas existências, aptos a colocar máscaras que individualizem pessoas suportes de ação e prontos a resistir ao engolimento da realidade. A blogosfera foi arrasada pelas redes sociais, cemitérios da comunicação, do bom gosto e do património civilizacional.
O deserto urbano estende-se por todo o planeta injetando todo o tipo de drogas que contaminam as sãs consciências e liquidam as vidas. Cada vez mais reduzem-se as possibilidades de resistência. Os derradeiros recursos tornaram-se mercadorias. O planeta está à beira da falência. Então esta que venha fulminante e depressa para levar também consigo os abutres que a precipitaram.
Vou, então, escrever cartas para o nada, o vacúolo desta porção do sistema solar que será limpo pelas defesas do universo eterno. Resistirei enquanto puder no meu baluarte que é o Tremontelo, que é ainda um lugar, um sítio para acolher pessoas e não a um ecrã de virtualidades. Onde a realidade é ainda real, porque resiste ao homem e é-lhe indiferente. Onde as pessoas, humanos e gatos, ensaiam máscaras e representam. Onde as plantas se batem por solo, água e sol. Onde a passarada e as esferas celestiais registam os seus cantos no interior do silêncio imperativo.
Passei uns tempos, estes dois últimos anos, a decifrar na Universidade os mistérios do conhecimento, esse estranho processo que nasce e se alimenta nos cérebros, sejam eles animais ou artificiais. Fiquei na dúvida se o conhecimento não ocorrerá também nas plantas, seres aparentemente destituídos de cérebros, pelo menos como nós os entendemos. Acho, por puro palpite, que as plantas têm inteligência suficiente para construir conhecimento. A ideia não é aberrante. As plantas diferem dos animais pela ausência de mobilidade e a sua motilidade apenas as adapta ao sítio onde se enraízam. Quando muito, são conduzidas passivamente pelas marés ou os ventos e os seus pólenes são transportados pelos insetos, passarada ou nos pelos dos mamíferos. De resto, constroem as suas existências sedentariamente, o que as impossibilita de terem um corpo que as individualize. Sem um corpo, e sem cérebro, não têm um eu. Primeiro, porque não têm um cérebro que possa produzir o eu. Depois, sem corpo, o eu não representaria nada. Logo, as plantas também não têm consciência. O grande problema é se um ser artificial, puro software ou um mecanismo autónomo, um robô, pode ter uma consciência artificial. A questão, a que ainda não é possível dar uma resposta cabal, mas existem indícios de que sim, conduz a um intrigante mistério: uma prunus spinosa ou umrubus fruticosus não sentem dores, não têm orgasmos, não vêm cores, não percecionam objetos, não fazem planos nem decidem executar ações, o que em princípio é possível, em condições que ainda hoje não são claras, a um robô.
O grande mistério ultrapassa, em várias ordens de grandeza, os grandes pequenos mistérios: afinal, para serve a consciência na economia do universo? Sobretudo a consciência alargada, capaz de viajar no tempo e de formular mistérios, espantos e admirações. Porque não há de o universo limitar-se a ser como é, sem ter o incómodo da carraça humana a questionar a sua natureza? Um questionar efémero, instantâneo e mortal. Todavia, um questionar.
Afinal, uma carta não é senão isso: um questionar. Poderia continuar no Tremontelo a podar, montar, plantar, enxertar, regar e manter a consciência reduzida ao nível da sensação de afago do pelo de um gato ou da dor de um espinho encravado na carne. Todavia, escrevo. Porque questionar é necessariamente uma interpelação. Mesmo quando interpelamos o nada.
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Tal não me acontecia há muito: uma calanzice inexplicável.
Após uma noite de sono curta, acordo com as primeiras clarezas do dia novo. Uma aclaração modorrenta de dia empastelado. Abro as portas de par em par e sinto a Farrusca pular do seu poleiro almofadado por cima da carcaça da velha lareira a pellets, que estorva no alpendre mas dá guarita à peluda que, no seu posto, me vigia as entradas e saídas. A cauda erguida, é sinal da dopamina que lhe endoidece o cérebro com a expetativa a realizar-se de comidinha e afagos. Põe-se a ronronar sabendo, de saber bem animal, que a oxitocina em breve me invadirá em golfadas, como a que sentem as amiguinhas que se encontram, também para descoser nas costas das outras, mas sobretudo pelo prazer que tiram de estar. Com o Agnus é outra coisa: Põe-se à distância com uma enorme carga de serotonina a desafiar-me o poder do género e do estatuto. Problema de machos, sobretudo de alguns com muitas coisas pouco ou mal resolvidas, que o torna um toleirão, com o sorriso cínico do jovem que de jota, num jato, se tornou primeiro ministro. A paparoca só é distribuída após a abertura das três pares de portadas do alpendre. Com a Farrusca fazemos aquele jogo em que ponho a mão a tapar o seu comedoiro cheio e ela me dá marradinhas afetuosas para a afastar. O Agnus observa à distância. Só mais tarde, a Pantera aparece a correr. A Laranjinha essa fica-se, como as velhotas da aldeia, arrimada à porta da cozinha - maneira de dizer. Nessa altura, já ganhei para o dia e, para não ganhar para sustos, lá me vou ao lazartan, que tomo com um kivi muito maduro e um copo de água. Depois, acendendo a máquina do café, já realizei tudo o que há de importante de preparação para o novo dia.
O que houve hoje foi um desacerto completo da rotina quotidiana. A chuva, já na véspera, apanhou-me desprevenido, encharcando tudo o que se abrigava sob o céu antes descoberto. O pio foi não ter lenha recolhida para me alimentar a salamandra. De manhã deu-me um não sei que estado de alma que me deixou mole e a querer voltar para a cama. Com o iPad travado em portrait e três almofadas sob a nuca, lá me fui alienando em postagens e repostagens, gostos e não gostos, comentários e descomentários, naquele desinteressante perder de tempo que é o Face, a religião da modernidade, ou pósmodernidade, tanto se me dá, que é como a diferença sem interesse entre a menopausa e a prémenopausa, pois se a essência da religião é o re-ligar, nunca nada antes religou tanto como religa o Facebook. Ora et labora, pois sou o bom "monachos" do presente, que lê o jornal matinal e despacha as notícias para o face, tal como o monge do baixo império ou da alta idade média despachava o trabalho da pena para a oração mental e a contemplação. À hora a que escrevo já deveria ter feito horas de trabalho de pá, enxada, ancinho e forquilha. Ontem, com sol ainda, se bem que a meio gás, lá consegui avançar na limpeza dos meus jardins e hortas e ainda deu para armazenar alguma vitamina D, apesar da minha tez morena, que se deveu ao cruzamento de todas as raças mediterrânicas, e da escassa radiação visível. Hoje não dá. Os terrenos estão encharcados bem como as botas de trabalho.
Quando os astros não deixam andar lá por fora, aproveito para limpar as casas de banho, aspirar e arrumar a casa, passar pilhas de roupa a ferro, que bom que é agora no tempo frio, fazer marmelada ou compota de pêra ou abóbora, na cozinha, ou ocupo-me a organizar a minha biblioteca, a completar os meus trabalhos de taxologista vegetal do Tremontelo, a ler ou a escrever. Instalações elétricas e reparação de móveis são coisas que fiz há pouco tempo, mas que tive que interromper por falta de materiais. Antes de comprar, é preciso planear e registar convenientemente as medidas, as formas e as qualidades do que se precisa.
Sou maníaco do trabalho e durmo pouca coisa. Hoje, foi um desvario completo, um grande regabofe. Levantei-me à hora do grande almoço para tomar o pequeno. E vim para aqui até agora, momento em que preparo a segunda refeição, sobe escadas, desce escadas, a luz que se apaga e lá se vai o computador, atender a campainha histérica de um alarme do face ou do gmail, o stress das pequenas coisas que incendeiam a vida de um sexagenário.
As interrupções são constantes. Como, por exemplo, esta agora de verificar que o meu guisado de ervilhas não pegou. Por isso, estou penosamente a tentar focar-me para atinar com a verdadeira razão que me trouxe aqui.
Já não venho aqui há muito tempo - é fácil verificar, tanto que me esqueci da senha. A memória acudiu-me à ponta dos dedos quando comecei a martelar o teclado.
Fui ver as últimas coisas que tinha escrito: andava numa de cartas. Agora, lembro-me porquê e o que pretendia caso não tivesse interrompido. Mas já não interessa. Tanta coisa aconteceu entretanto. E tanta coisa má. Pois não pode haver muitas outras coisas tão más como assistir aparvalhado à destruição impiedosa do meu país. Apesar do CR 7, que ainda assim tem o condão de nos levantar o moral.
Embora não se tenham apercebido, neste exato momento acabei de almoçar, ainda cheiram na chávena as últimas essências do café, a única substância que divinizo e adoro ritualmente. É uma perda de tempo voltar a ler o que já estava escrito que se justifica apenas por ser em benefício do putativo leitor. Pois, houve, um hiato grande que devo compensar em pouco tempo.
Depois da Universidade, um grande investimento no Tremontelo. Dois anos fora e aquilo já parecia mato. Mãos à obra, é o meu pensamento favorito nas alturas de tormenta!
O levantamento de todas as espécies vegetais, endógenas e exógenas, é trabalho para o resto da vida. Estamos nas angiospérmicas, que é obra. A recolha é sobretudo fotográfica, que os procedimentos académicos são dispendiosos em material e tempo. Algumas folhas de recorte agradável ou exótico vão a mumificar para dentro de livros, onde empalidecem e murcham com o cativeiro. Desconhecendo por completo o assunto, pus-me à cata de uma taxonomia que me servisse para auxiliar a catalogação. Lá descobri o APG cujas 3 versões conhecidas estudei obsessivamente. Depois, o trabalho de construir uma base de dados, trabalho que ainda continua a ser feito, para substituir mais tarde as worksheets com que tenho trabalhado.
Daqui sou levado a evocar a minha ida a Massachusetts. Gostei muito da gente com quem convivi, da beleza inesquecível de Boston e Cambridge a bordejarem as margens do Charles, dos passeios a pé num mar de verde e de ruas a ressentirem a tília. Também se come e bebe bem, sobretudo se tivermos a sabedoria de encontrar um bom restaurante português, malgré os galos de Barcelos e as loiças de barro negro de Molelos (irra que até rima!).

O que mais me atraiu aí, e que me levou lá várias vezes apesar da distância ao sítio onde vivia, e sem ter conseguido esgotar o que queria, foi o Arnold Arboretum em Jamaica Plain (www.arboretum.harvard.edu/).
Sobretudo, o que me deu água pelas barbas, a sua maravilhosa coleção de rosáceas, a que falta certamente algumas das espécies que proliferam copiosamente no Tremontelo.
Uma outra empreitada grande foi trazer para o Tremontelo parte da biblioteca de Lisboa (até agora cerca de 1600 obras) e organizar logicamente uma biblioteca dispersa geograficamente. Mais a contrução de uma base de dados e a sua alimentação com, até agora, cerca de 4500 volumes. É obra! A par disso, obras mesmo ... de carpintaria e eletricidade. Que tão pouco espaço tão cheio, precisa de muita prateleira e suficiente iluminação. Isto requer mais formação profissional: no verão, a arte a aprender foi cortar, dobrar e tornear tubo hidronil, trabalhar com uniões, junções, tês e joelhos de 2 ou 3 vias, curvas e tampões, válvulas de corte e segurança, passadores de esfera e manómetros de pressão, tudo a macho ou fêmea; este outono, virei para a tricotomia neutro-fase acompanhada da terra bicolor, com as cores do Brasil que isso sim é terra! Os projetos não são já aquelas redes tipo mapas do metro com que canalizamos a água, que aqui requer ainda mais economia alcançada com boa utilização das caixas de junção. Os circuitos elétricos, como um simples lacete para estabelecer um interruptor à altura da mão, são de uma simplicidade e de uma beleza chocantes. Tudo isto é obra de desenho, por isso continua a arte de desenhar jardins. O cavalete é que nada: lá está a apanhar teias de aranha e a suportar mochilas de portáteis defuntos.
Depois há as leituras. Sobre quê? Ficção científica, que ainda falta ler algumas dezenas de títulos da Argonauta. Pesquisas sobre deus, o monoteísmo e os povos semitas. Ando a precisar de ir aprender aramaico que não me conformo com a leitura dos evangelhos traduzidos pelos capuchinhos ou a bíblia de Jerusalém em francês. Leituras sobre espiritualidade: depois de Francisco de Assis, Teresa de Ávila e João da Cruz, agora a vez de Alçada Baptista; agora espiritualidade cristã depois de inúmeras leituras sobre a Wicca. Física das partículas e astrofísica. Banda desenhada. Literatura contemporânea (a ler Pamuk). Filosofia (Ética, de Espinosa, a preparar-me para Arendt). Muitas pequenas leituras de Garden e de Petite Cuisine. E Gatos, muitos gatos...
Depois das leituras, as escritas. O tema é o de sempre, identificar os parasitas dos nossos cérebros humanos, particularmente aquele com que privamos mais: o Eu. Identificá-los, descrevê-los e conjeturar sobre a sua génese e funções. Mas isso não revelo aqui ... nem ali. O objetivo é conhecer a doença e administrar-lhe a terapêutica.
Finalmente os gatos. É como a gente: nascimentos, casamentos e funerais. Só que o filme leva menos tempo a correr.
