Um mês depois, escrevinhado no Tremontelo.
Levou tempo,nessa altura, até o médico se lembrar de me mandar fazer analises. Os resultados revelaram uma anemia monstruosa, para não dizer, cruzes canhoto!, de caixão à cova. O primeiro ferro tomado por via oral teve resúltados imediatos ao nivel da disposição. Entretanto, lá consegui a consulta de proctologia. Fui submetido a um tratamento que, ao fim de uns tempos, se revelou infrutífero. Os níveis de anemia aumentaram e comecei a tomar ferro por via endovenosa. Andei semanas a caminhar para o Hospital.
A consulta de proctologia adiava. A médica estava de baixa prolongada e, diziam-me, não tinha alta à vista. Forcei o retorno à consulta de cirurgia e resultou: foi logo marcada a inscrição para cirurgia. Daí a três meses, o que constituiu obviamente um privilégio, levei o corte fatal na maldita hemorroida que me infernizava a vida. Dizem-me que foi feita com uma máquina que corta e ao mesmo tempo agrafa, um sucessor hábil dos velhos procedimentos de corte e costura. A operação é realizada com anestesia total e em regime de ambulatório.
A Graça trouxe-me completamente zonzo para casa mas regressei no dia a seguir à Urgência com uma hemorragia. Afinal, soltara-se um grampo que necessitava de ser substituído. Fiz nova intervenção e, desta vez, fiquei internado para vigilância.
Estirado na cama da enfermaria só tinha as dores para acesso ao palco da mente. Passados um ou dois dias, a Graça trouxe-me de volta o iPhone e o iPad e, com eles, a ligação ao mundo exterior. Agora, tinha as noticias, a qualquer hora do dia ou da noite, para ter em que pensar.
Entre outras coisas que atestavam o estado do mundo, uma quase passou despercebida: que Putin, o senhor de todas as Rússias, assegurava que os movimentos de tropas russas na Bielorrússia e na fronteira com a Ucrânia se tratavam apenas de exercícios militares. Era uma notícia tranquilizadora, mas tinha o rabo de fora como se diz dos gatos escondidos.
Assisti, numa certa cama de uma certa enfermaria de um certo hospital de um pequeno país no ocaso da Europa, à mais brutal, à mais infame tragédia da minha curta vida. Nasci quando a Europa se recompunha de uma horrorosa guerra. Vou morrer, pensei, no retorno do mesmo, o eterno retorno do mesmo, do big-bang e do crash final. A minha vida era, tinha sido, terá sido um pequeno interlúdio para esticar as pernas, beber um café no bar do mundo e mijar. A minha vida não se tinha passado na grande sala do espectáculo da farsa humana. Mas não lhe escaparia. Deus é um cão raivoso e vingativo. Vejo-o a apontar-me o dedo e a dizer: “não escaparás à tua condição, merdoso!”