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O termo espinheiro refere-se a um conjunto de arbustos do género crataegus, da família das rosaceae, que, apesar dos cerca de 500 anos de idade que podem atingir, dos seus espinhos e da sua madeira extremamente dura, continuam a ser um símbolo de beleza e fineza. Contudo, era da sua madeira dura como o ferro que antigamente se cortavam os cepos dos suplícios. Foram encontrados vestígios de caroços, em ruínas de cidades remotas, comprovando que na Pré-História era usado como alimento. Os frutos vermelhos do pirliteiro, globosos a ovóides, e conhecidos em Portugal por pilritos ou pilretes, são, desde há muito tempo, utilizados pelas suas aplicações diuréticas, adstringentes, antiespasmódico, febrífugo e hipotensor. A sua utilização é indicada para os estados de ansiedade, angústia, sono e nervosismo. Recentemente, médicos americanos puseram em evidência a sua poderosa acção cardíaca provavelmente devida aos seus componentes: pigmentos flavónicos, aminas, derivados terpénicos, histamina, tanino e vitamina C.
As espécies mais conhecidas são o crataegus laevigata (ou crataegus oxyacantha) e o crataegus monogyna. Este último é, na realidade, o espinheiro alvar, conhecido também por abronceiro, branca-espinha, cambrulheiro, combroeiro, escalheiro, escrambrulheiro, espinha-branca, espinheiro-branco, espinheiro-ordinário, estrapoeiro, estrepeiro, pilriteiro, pirliteiro. Arbusto, ou pequena árvore que pode atingir os 18 metros, apresenta um tronco simples ou muito ramificado desde a base, formando uma copa muito variada. Ritidoma geralmente fissurado. Espinhos axilares comuns, alguns desenvolvem-se em pequenos ramos laterais terminando em espinhos. Folhas muito mais compridas do que largas, ovadas com lobos, lobos alongos, agudos ou subobtusos, margens mais ou menos inteiras ou com poucos dentes no ápice, ligeiramente coriáceas.
Sabia da presença à volta do Mediterrâneo. Era conhecido nos povos semitas, se tivermos em consideração as vezes em que é referido na Bíblia:
- “Então, do alto do céu, gritou o anjo do Senhor: "Abraão! Abraão! Não faças mal ao menino. Agora sei que temes a Deus pois não poupaste teu filho único para me obedeceres". Abraão levantou os olhos e viu um cordeiro preso num espinheiro. Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto em lugar do filho. Então o anjo do Senhor disse pela segunda vez: "Já que para me obedeceres não poupaste o teu filho único, eu te abençoo. Dar-te-ei uma posterioridade tão numerosa como as estrelas do céu e a areia na praia marítima. Em um dos teus descendentes serão benditas todas as nações da terra". Génesis 22:11-18)
- “E apareceu-lhe o anjo do Senhor em uma chama de fogo do meio duma sarça. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia.” (Êxodo 3:2).
- "Como o espinho que entra na mão do ébrio, assim é o provérbio na mão dos tolos." (Provérbios 26:9)
- “Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei; e disseram à oliveira: Reina tu sobre nós. Mas a oliveira lhes respondeu: Deixaria eu a minha gordura, que Deus e os homens em mim prezam, para ir balouçar sobre as árvores? Então disseram as árvores à figueira: Vem tu, e reina sobre nós. Mas a figueira lhes respondeu: Deixaria eu a minha doçura, o meu bom fruto, para ir balouçar sobre as árvores? Disseram então as árvores à videira: Vem tu, e reina sobre nós. Mas a videira lhes respondeu: Deixaria eu o meu mosto, que alegra a Deus e aos homens, para ir balouçar sobre as árvores? Então todas as árvores disseram ao espinheiro: Vem tu, e reina sobre nós. O espinheiro, porém, respondeu às árvores: Se de boa fé me ungis por vosso rei, vinde refugiar-vos debaixo da minha sombra; mas, se não, saia fogo do espinheiro, e devore os cedros do Líbano.” (Juízes, 9: 8-15).
- “Agora, pois, vos farei saber o que eu hei de fazer à minha vinha: tirarei a sua sebe, e será devorada; derrubarei a sua parede, e será pisada; e a tornarei em deserto; não será podada nem cavada, mas crescerão nela sarças e espinheiro; e às nuvens darei ordem que não derramem chuva sobre ela.” (Isaías, 5: 5-6)
- " Em lugar do espinheiro crescerá a faia, e em lugar da sarça crescerá a murta; o que será para o Senhor por nome, por sinal eterno, que nunca se apagará." (Isaías 55:13)
Mas, ao contrário do que eu sempre pensei, a presença do espinheiro em Portugal está suficientemente documentada desde o princípio dos tempos bem como a atracção que ele exerce sobre as virgens.
O Convento do Espinheiro situado em Évora, que dizem ser um hotel luxuoso, foi um antigo convento de frades Jerónimos do século XV. Diz a lenda que, por volta do ano 1400, a Virgem Maria apareceu sobre um espinheiro que por lá existia. Em 1412, foi edificado um oratório em honra de Nossa Senhora. Em 1458, reinava em Portugal D. Afonso V, foi fundada a igreja, dada a crescente importância deste local como ponto de peregrinação, e, posteriormente, o dito convento.
Há também em Seia, no Lugar do Espinheiro, uma Albergaria Senhora do Espinheiro. A Ermida, que se ergue no planalto, a meio caminho entre Seia e o Sabugueiro (a aldeia mais alta de Portugal) faz parte de um dos primeiros roteiros turísticos religiosos de Portugal. “A Lenda de Nossa Senhora do Espinheiro” remonta à génese da nação Portuguesa, pela figura de D. Afonso Henriques. A capela de Nossa Senhora do Espinheiro que possui uma data inscrita num muro, 1382, foi edificada à beira da estrada que liga Aldeia da Serra à Lagoa Comprida, um pouco acima da Albergaria Senhora do Espinheiro e da Capela de Nossa Senhora de La Salette.
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in O Tremontelo
- Depois da nossa conversa, andei a pensar...
- Andaste a pensar, felpudo?
- Andei a pensar na forma estranha como as ideias se formam nas cabeças dos humanos.
- Explica-te lá.
- Vocês pensam muito a realidade do mundo, da natureza, contando histórias.
- Mais ou menos. Chamamos mitos.
- Pouco me importa, são só palavras! Eu não uso palavras quando comunico contigo. Mas percebo que ficas mais calmo, quando escolhes uma palavra, e outras vezes ficas muito excitado, à beira de perderes as estribeiras, se escolhes outra. Não percebo a diferença pois acho que estás a pensar na mesma coisa... Ainda pensei que fosse defeito teu, mas já verifiquei que essa é uma característica comum do teu género.
- Tens razão. Mas olha que duas palavras nunca significam exactamente a mesma coisa.
- Achas? Quase me parece que defendes que é o encadeamento das palavras que origina o pensamento. Para mim, as palavras são apenas os sons muito complicados que os humanos emitem para comunicar. Vê lá tu que, só para te agradar, ando a miar muito mais. Quando andas para aí todo compenetrado a podar as sebes ou a apanhar ervas e não me ligas nada, basta eu miar uma parvoíce qualquer para ficares logo todo interessado. Depois, falas, falas. Vou-te dando uns miados de vez em quando, sobretudo quando deixas de me fazer festas no pelo. Já descobri umas toadas que funcionam muito bem contigo.
- Manipulador, interesseiro!
- Vês? Se estás irritado comigo, devias arranhar-me. Mas tu, não. Mandas-me com palavras. Acalma-te, pois, e diz-me lá qual é a diferença entre uma história e um mito.
- Bem, um mito quer dizer história em grego.
- Pois.
- Não me interrompas! Mas não é bem a mesma coisa.
- Não te estou a interromper.Estou, aliás, muito curioso. Vá!
- Mito é uma palavra que já não se usa muito, é muito antiga. Quando se usa esta palavra queremos expressar a ideia de que a história já foi engendrada há muito tempo e que se refere a acontecimentos muito antigos ou, mesmo, intemporais. Participam nestes acontecimentos tanto homens como deuses. E até animais, mesmos os ranhosos como os gatos.
- Passe o comentário, não é?
- Os mitos compõem-se geralmente de duas partes, mesmo que a segunda não esteja expressa: o enredo da história e a moralidade da história. As histórias não são contadas, porque sejam verdadeiras ou bonitas: as histórias são contadas para que se possa extrair uma lição. Um velho contador grego de mitos, o Esopo, acabava sempre assim as suas histórias: "ó mütos dêloi óti...", ou seja "a história mostra que..." Os mitos à volta dos deuses contêm uma lição tácita: Ou referem-se às origens e aos fins, ao valor ou às consequências das acções dos humanos, a conflitos de interesses, a qualquer coisa. Mas nada fica expresso, de modo a que cada ser humano possa interpretar o seu significado de uma forma pessoal. Nem sempre as coisas são assim. Devido à apetência dos humanos de manipular o pensamento, as emoções e as escolhas dos outros humanos, a maior parte das sociedades autorizou o aparecimento de uma classe social de intérpretes oficiais cuja missão é definir a interpretação correcta e única autorizada dos mitos e das fontes da revelação. À imagem e semelhança de deus, que separou a luz e as trevas, os intérpretes separam a ortodoxia das heresias.
- E como aparecem aí os outros animais?
- Os animais aparecem a falar.
- Ridículo!
- Quando os mitos gregos foram traduzidos, primeiro para latim, depois para romance, passámos a chamar-lhe fábulas.
- E já vão em três as palavras para o mesmo. Vocês deviam era experimentar dormir mais umas horas durante o dia.
- Claro que foi preciso encontrar mais uma palavra, pois não vês a diferença?
- Não.
- Animais que falam...
- E daí?
- Em latim vulgar havia duas palavras para dizer "falar"...
- Deixa-me rir.
- E as duas palavras eram "parolare" e "fabulare". Desta última derivaram as palavras portuguesa e asturiana "falar", a palavra aragonesa "fablar" e a castelhana "hablar". Noutras línguas novilatinas usava-se mais a primeira. Daí resultaram o "parlare" italiano, o "parrari" siciliano, o "parlar" catalão e o "parler" francês.
- Divertes-me imenso. Queres com isso dizer que as fábulas apareceram do lado de cá dos Pirinéus, do lado dos fabuladores? E que do lado de lá, do lado dos parladores, apareceram as párulas?
- Querias dizer parábolas... Mas não, foi exactamente ao contrário: as fábulas, onde os animais falam, apareceram do lado dos parladores, como tu dizes. Porque os animais, mesmo quando falam a mesma língua dos humanos, essa fala tem que ter outro nome. Do lado de cá, os humanos falam e os animais palram.
- Disparate! Mas voltamos aos mitos, está bem? Explica-me porque é que a mesma história é contada uma vezes de uma maneira, outras vezes de outra, mas é sempre a mesma: Mithra, Jesus, blá-blá-lá...
- São histórias de religiões diferentes.
- Sim, já me explicaste isso, mas continuo sem entender.
- E não entendes o quê?
- Ora, não entendo para que querem tantas religiões, não entendo porque é que cada religião quer ter a sua história, não entendo o porquê de tanta conversa.
- Se tiveres paciência, explico-te.
*- ...
- Não são as religiões que fazem histórias diferentes porque as religiões não fazem histórias. São as histórias que fazem as religiões. As histórias contadas nos livros judeus, livros que em grego se diz "biblia", deram origem à religião judaica e a várias seitas judaicas, ao cristianismo nas versões ortodoxa, católica e reformista e ao maometanismo. Isto para ser breve, porque as divisões e sub-divisões, para usar uma expressão da bíblia, são mais numerosas do que as areias do deserto ou as estrelas do firmamento. Cabe aos rabinos, aos padres e, de uma maneira geral, aos intérpretes dos grandes mitos da humanidade compreender e revelar o significado oculto dos mitos. Daqui é que surgem as religiões: verdade única e quem não é por nós é contra nós... e corte-se-lhe a cabeça.
- Uf!
- Ah, pois é!
- Olha que percebi tudo: irra que vocês são frescos!
- É assim! Os persas tinham lá a sua religião, não sei onde é que a foram buscar, mas sabiam, como qualquer povo conterrâneo desde o Atlas até às montanhas da Índia, quando era e o que representava o solstício de inverno.
- O tal dia de Natal?
- Isso mesmo.
- A questão é que o Mithraismo contaminou as legiões romanas...
- Sim. E daí?
- É que o cristianismo primitivo também contaminava as classes trabalhadoras do império - os escravos, os servos, alguns patrícios mais conservadores das velhas virtudes republicanas - e era um movimento relativamente incipiente e, portanto, muito moldável.
- Sim?
- Mas não acaba aqui: o culto de Isis e Osiris estava bastante arreigado na aristocracia romana. Ora acontece que o império estava cheio de problemas e a arrebentar pelas costuras pela pressão exercida sobre as fronteiras pelos estrangeiros, os "barbaroi".
- Três religiões? Não é o que vocês humanos chamam um saco cheio de gatos?
- Foi o que pressentiu Constantino, um imperador romano. Como todos os imperadores, havia feito carreira militar; por isso, tinha prestado culto a Mithra. Mas sabia o peso e a influência do cristianismo nas classes produtivas sempre dispostas à rebelião. O patriciado e os aristocratas voltavam-se para Oriente. Para unificar o império, preciso seria amalgamar as religiões, o que era fácil porque elas tinham sempre algo que se podia pôr em comum, o culto da mãe dos deuses e do seu filho o deus solar. Constantino criou essa religião: abraçou o cristianismo e introduziu-lhe inúmeros elementos das outras religiões. Para criar uma religião verdadeiramente unificada e global ("católica") e acabar com as inúmeras dissensões entre os cristãos convocou um concílio para Niceia onde se definiram para a eternidade os dogmas do novo cristianismo.
- Então em que consistiam esses traços comuns desses cultos a que te referiste?
- Bem, já sabes. É aquilo que tu achas ser a mesma história quando as diversas histórias se mostram diferentes. No solstício do Inverno nasceu um menino que era filho do espírito de deus e de uma virgem humana. Vários sinais celestes atribuíam profeticamente grandes poderes ao menino o que pôs em pânico os poderes da altura que decretaram o puericídio generalizado. Os pais fugiram com ele para o estrangeiro. Reaparece mais tarde, é tentado e resiste aos poderes malignos. Faz milagres para ser aceite e seguido pelo povo. É morto, ressuscita, desce aos infernos e sobe ao céu.
- Mas disseste que Jesus não tinha nascido no solstício do Inverno.
- Pois disse. Mas com jeitinho passou a ser. E com jeitinho reescreveu-se, mais uma vez, a história do deus sol. Para ser contado todos os anos no Natal, como já era desde o princípio do mundo.
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Comemoração da deusa Brígida ou Brigite como a "noiva do sol". O acréscimo diário da luz solar faz despertar as sementes adormecidas na terra gelada pelas geadas. É o primeiro indício da Primavera. A donzela, agora recuperada do parto da criança solar, ressurge revigorada.
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(Esta "conversa" deu-se há muito tempo, antes do carnaval, e não ficou registada porque o autor destas palavras caíu de cama com uma gripe monumental e teve, a partir daí, uma convalescência pertinaz que o derreou de corpo e de espírito. Parte da conversa, que foi mais longa do que aqui se narra, ficou esquecida, e outra teve que ser "reinventada". Em consequência, não voltei a ver o Tigre até ao fim-de-semana passado. Quando me viu, perguntou laconicamente: "não tens aparecido muito?". Retorqui-lhe que tinha estado doente. E ele: "Já estás bom? Ainda bem! Então vamos lá retomar os nossos diálogos porque deixaste-me aqui a pensar...". Mas disso falarei depois.)
- Fala-me mais disso das histórias
- Queres que te conte uma história?
- Talvez venha a querer. Mas, agora, preferia meditar sobre o mistério do pensamento humano.
- Interessa-te assim tanto?
- Sim, muito. É intrigante. As galinhas, os melros e as perdizes têm pensamentos pequeninos e redondos como os ovos; e não os conseguem encadear uns nos outros.
- Falas muito com essa gente?
- Raras vezes, pois não têm assunto que me interesse. Prefiro escutar o pensamento dos sobreiros ou dos carvalhos, que é rigoroso e lento, mas sólido e profundo.
- Gostava de saber escutar melhor o pensamento das árvores.
- Terias que ter uma disponibilidade maior, terias que reservar-lhes um tempo de que não dispões, sempre a planear, sempre a executar tarefas, a comer à pressa, a dormir só à noite e pouco.
- Nós temos as palavras. Quando as dizemos, elas atravessam o tempo numa sequência curta e vão ficando para trás, no passado. Se não precisarmos mais delas, desaparecem. Depois dizemos palavras novas que colamos às anteriores e que desaparecem também.
- E se não as quiserem esquecer?
- Se não as quisermos esquecer, escrevemo-las.
- Compreendo: usam as palavras para fixar a realidade. Mas como as palavras são mais voláteis que a realidade convertem-nas em coisas para as fixar.
- De certo modo, assim é.
- E conseguem, dessa maneira, que a realidade seja mais extensa do que a própria realidade. Porque à realidade, que é, por exemplo, a minha, acrescentam a realidade das palavras.
- Temos, antes de mais, que decidir o que é a realidade a que nos estamos a referir. Para ti a realidade é a "natureza", que é, como escreveu um dia um grande filósofo humano, "a totalidade de todos os objectos da experiência". A tua realidade é a totalidade do que tu experimentas. Nós, humanos, expandimos a realidade a todos os objectos que nos são dados no discurso.
- Estás a dar-te ares de pessoa importante. Para vocês humanos, é importante julgar que vivem, para além da vida na realidade, uma outra vida nessa outra realidade que é a das palavras: romances, drama, cinema, televisão, computadores, circo, jogos, desporto, "media", teorias, negócios, política, marketing, ciência, religião, baptismos, casamentos e funerais. Vivem tão arredados da realidade a que chamas "natureza" que a vida que experimentam viver vos parece intemporal. Tudo o que é humano centra-se à volta da morte. E cada um de vocês comporta-se como se for imortal.
- Não se passa o mesmo convosco?
- Ah!Ah!Ah! Connosco? Sabes bem que temos 7 vidas? Dá muita pica perder uma vida; sobretudo sabendo que à sétima acabou-se. Viver, para nós, é o arrepio de passar as patinhas pelo fio da navalha. Viver, para vocês humanos, é contar grandes mentiras: umas vezes, solitariamente, quando imaginam o que serão, quando reescrevem a história do que foram ou quando ficcionam os papéis que actualmente representam; outras vezes em ninhada, contando com ar sério uns aos outros, convictamente, aquilo que todos sabem ser mentira.
- Não se pode falar contigo, peludo!
- Sabes bem que não podes falar comigo, porque eu não falo. Mas, em contrapartida, sabes que podes pensar comigo que é aquilo que não consegues fazer com os teus congéneres.
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Enquanto não me vem a pachorra para postar aqui as mais recentes conversas com o Tigre vou partilhar alguns trechos maravilhosos de um livro que acabei de comprar. O livro chama-se, na tradução portuguesa, "o gato que veio do frio: uma fábula", escrito por Jeffrey Moussaieff Masson.
Embora sinceramente não conheça este autor, os meus primeiros avanços na sua leitura despertaram-me o desejo de uma maior aproximação. Uma pequena referência no fim da contra-capa apresenta-o como um antigo estudioso de Sânscrito e autor, entre outros, de uma "Vida Emocional dos Gatos". Ora este nome diz-me alguma coisa. Procurei na minha BD Bibliográfica por "gatos" e só me apareceram "As melhores histórias de gatos", uma antologia das edições ASA e os 6 volumes dos "Gatos" do Fialho d'Almeida. Recordo o nome mas, parece-me, o seu autor viveria na Austrália com a mulher, os filhos e os gatos, uma galeria de nomes e personalidades vincadas que cresceram juntos com as crias de duas patas dando mais vida às suas vidas. Vou ter de procurar o livro em Vale de Moinhos no próximo fim de semana, já que não o encontro em Lisboa.
"Há milhares de anos, nas florestas do Sul da Índia, Billi estava empoleirado no seu ramo preferido, da sua mangueira preferida, no seu mangueiral preferido a contemplar-se. Esticou uma bela pata e a seguir outra. Lavou o focinho. Abanou a cauda. Observou as suas manchas pretas e castanhas. Que forte, que elegante, e como era fantástico, ser um gato-leopardo asiático!"
Esta passagem fez-me evocar uma imagem do Tigre em cima da oliveira ao pé da porta da cozinha a lavar-se metodicamente, a exprimir satisfação, o seu orgulho auto-contemplativo e, com os olhos semi-cerrados, a confirmar, de tempos a tempos, a minha presença. A história continua com o Billi a prestar atenção a uns miúdos indianos que ali passavam por baixo da sua mangueira preferida, a conversarem e a chamar por um cão que lhes era afeiçoado.
"- Janaka! - gritou a criança rapaz, e dali a pouco apareceu um grande cão castanho aos saltos. Ladrava excitado, corria em volta das crianças, como se não as visse havia dias, , em vez de apenas há alguns minutos, e enchia-as de beijos de cão.
Billi virou o focinho com repugnância. O que é que dava aos cães? Nada tinha contra os canídeos em particular, mas a forma como eles derramavam afecto sobre os seus amigos de duas patas era ridícula. Ainda pior era a maneira como os cães tinham abdicado da sua liberdade para receberem dos humanos a segurança de uma casa e da alimentação. Onde estava a sua dignidade? Onde estava o seu orgulho? Como podiam trocar algo tão inestimável como a independência por uma coisa tão banal como a segurança?".
"Como podiam trocar algo tão inestimável como a independência por uma coisa tão banal como a segurança?". Esta frase retinia asperamente no interior do meu crânio. "Como podiam trocar algo tão inestimável como a independência por uma coisa tão banal como a segurança?" E então percebi o elo que me faltava para compreender a re-ligação entre os humanos e os divinos: "Como podiam trocar algo tão inestimável como a independência por uma coisa tão banal como a segurança?".