- Detalhes
in O Tremontelo
Seriam já umas onze horas quando começou a dar sinais da sua existência. Ao dar-me conta de que ele andava aí pelas redondezas, chamei: “An Jiiiiie?”. Ao que ele deu resposta imediata gemendo, como era seu costume, um miado muito seu que fazia lembrar um arrastado e melancólico lamento. Só para me certificar, ou talvez porque o jogo da repetição se transformara em hábito, repeti várias vezes o chamamento, só que cada vez num tom mais elevado e com um modo mais categórico: “An Jie!”. Cada vez mais aproximado, proferiu o mesmo lamento, também um tom acima do inicial e mais arrastado.Ao pé um do outro, repetimos ainda por três vezes o mesmo diálogo, enquanto ele por três vezes se entrelaçava nas minhas pernas. “Tens fome, AnJie?”. Que sim, que tinha, pois pronto se ôs resolutamente a correr à minha frente de rabo alçado em direcção ao terraço do Anexo.
Procedi à rotina do costume enquanto ele andava para ali a dar marradinhas nas minhas pernas. Limpei criteriosamente o comedouro, uma tigela amarela de plástico comprada no Intermarché do Cartaxo, abri a latinha fazendo o estalido característico ao arrancar a tampa de alumínio, a que ele respondeu automaticamente com um miado seco, e verti o conteúdo no comedouro de plástico. Arrumei o lixo e lá o deixei a bater-se, creio que com um souflé de atum e fui aos meus afazeres para a horta.
Andava a mondar, creio, um exercício repleto de flexões sobre os joelhos acompanhado da contracção dos abdominais, cujo objectivo é retirar as ervas, que do ponto de vista de um jardineiro são daninhas, pois têm um efeito nulo no canteiro e consomem as reservas nutritivas e a humidade do solo tão necessários, como escassos, para a preservação das espécies ornamentais ou comestíveis. Estaria então a mondar, pois é isso que a memória me dita embora não seja certo que essa memória corresponda aos acontecimentos desse dia ou aos de um dia próximo, quando o sinto a aproximar-se e ... espantem-se, pois também eu confesso que me espantei, lá ouvi outra vez aquele miado que parecia um lamento, mas agora mais pungente, mais confrangedor, uma directa e acutilante punhalada no sentimento humano.
Estaria ele ainda com fome? O raio do bicho comera uma lata inteira de atum, maior que a barriga dele, e vinha agora implorar mais comida? Ná! Havia engano e seria eu que estava a interpretar mal o bichano. Então que quereria ele? Disfarcei, fiz-me desentendido e continuei na monda, flecte barriguinha, flecte barrigão,gatos destes não me fazem ninhos atrás das orelhas! Mas o miado lá continuava, insistente, obsessivo, desesperado. Uhm! Só pode ser fome, é comida que ele está a pedir. “Papinhas, An Jie?”.
Acto contínuo, volta o dorso e, de rabo alçado, dispara em direcção ao anexo. Não havia dúvidas, era fome. Fui buscar outra lata, ritual de limpar o comedouro, servir, colocar o recipiente no sobrado do alpendre. O An Jie parecia doido, nervoso miudinho, a dar voltas sem eira nem beira. Parecia desorientado, à espera de alguma coisa, ou atento, como quando se aproxima da rede o cão do vizinho Paulo. Se calhar enganara-me, não tinha fome, o que iria fazer da lata aberta? Era bom para aprender a ter juízo e desta feita não me convencer de que tinha o condão de perceber a linguagem dos gatos.
De repente, desapareceu-me da vista correndo em direcção a nascente. Que comportamento estranho!
Perplexo, ficara no mesmo lugar com a lata aberta na mão a olhar para nenhures. Não sei se pensava: era daquelas raras situações em que a consciência se nos fica suspensa, como um relógio de ponteiros temporariamente sem pilhas e que volta a trabalhar com umas pancadinhas ligeiras. Ali estava eu, sem jeito, com uma lata aberta na mão, que tanto poderia ser de atum, como de vaca ou frango, assunto que era para mim irrelevante e que, para o gato, parecia ser completamente indiferente.
Nestes momentos, em que a duração do tempo é consumida de uma forma perfeitamente inútil, é que nos apercebemos de um modo trivial que existimos. E que “existir” é apenas isso: estar para ali, sem sentido, sem finalidade, sem utilidade. Será que os gatos se apercebem de que existem? Da minha observação tenho concluído pelo contrário: existem e, como tal, estão-se nas tintas para pensar nisso. Diria pela forma como pensam que são filósofos cínicos. Mas isso indignaria profundamente um gato: um cínico, como a palavra grega diz, é aquele que se comporta como um cão. Ora um gato jamais faria isso! Teríamos que inventar uma palavra nova para designar a escola de pensamento felino. Consultando o dicionário de Português-Grego concluo que gato se diz qualquer coisa como “ailuros”. Em vez de cínica, teríamos então a escola ailúrica cujo lema bem poderia ser “primum vivere, deinde philosophare”. Mas sendo isto contas de outro rosário, voltemos ao ponto em que estava de lata na mão, existindo, de consciência semi-suspensa e envergando provavelmente o ar mais idiota que jamais consegui noutras alturas.
A certa altura pareceu-me que o bicho regressava, mas vinha negro, negro como um tição, atarracado e menos ágil do que era costume. Um pouco tímido talvez. O que era deveras uma situação demasiado confusa, dado o estado de letargia a que me tinha deixado chegar.
A torpor desapareceu de vez, como nas cenas em que uma pessoa sai de um estado de hipnose com um estalido de dedos do hipnotizador. De repente, de peito branco todo emproado, com marcha compassada e ar decidido e garboso, aparece atrás o An Jie, todo ele orgulho estampado no focinho giro. Afinal, aquele ser preto, meio dengoso, meio medroso, que vinha à frente, não era o An Jie.
Afastei-me para não assustar o estranho e dar lugar à cena que se iria passar.
O An Jie apressou-se a passar à frente do gato preto e veio para ao pé de mim, ronronando e enrolando-se-me nas pernas. Eu estava apenas calado e imóvel. Voltou atrás e em paralelo com o gato preto colou-se a ele, ronronando e dando cabeçadinhas na cabeça dele. E assim progrediram os dois colados até se abeirarem da tigela amarela onde o gato preto se pôs a comer avidamente e o An Jie, sem desgrudar, cabeceava ternamente na cabeça do outro ... da outra, como não tardei a aperceber-me com este jeito que tenho de olhar logo para onde algumas pessoas me dizem que não devo.. cabeceava e olhava para mim com os olhos de um apaixonado. Assim ficaram os dois algum tempo, ela a bater-se com o atum (ou seria vaca, ou frango?), e ele, ora às marraditas, ora a olhar para mim todo vaidoso. Acabado o repasto da dama, trouxe-ma o An Jie ao pé de mim (espantosa a confiança com que ela o seguiu para abordar um estranho!) e olhando-me directamente nos olhos, coisa que um gato em situação normal jamais fará, disse-me:
É a minha namorada”. Não sei se sei porquê, baptizei-a com o nome de Julieta.
- Detalhes
PANTEÍSMO
No passado, pode ter-se desenvolvido a crença do grande animal, o grande ser omnipresente dotado de vida, grande como a própria terra, ou como o próprio universo. Embora distinto nas suas partes, seria uma totalidade encerrada sobre si própria e fora da qual nada haveria. Melhor dizendo, haveria o nada. Os seus atributos mais óbvios seriam extraídos por analogia da vida animal: inspiração - respiração, sono - vigília, movimento - repouso, atributos que permitiriam à humanidade uma compreensão serena dos fenómenos naturais. A ideia de uma totalidade organizada e auto-regulada ainda subsiste nos actuais modelos e concepções sistémicas da Natureza.
Se transferirmos os atributos da divindade para o grande ser vivente, teremos então uma representação exacta daquilo em que consiste o panteísmo naturalista: todos os seres, viventes e não viventes, estão fundidos num todo que é a divindade. O nascimento e a morte, são transições no interior de uma totalidade que se renova perpetuamente. “Fui rocha em tempo, e fui, no mundo antigo, tronco ou ramo na incógnita floresta... “. Os seres, incluindo o homem, são partes inseparáveis da natureza.
Deus é imanente à natureza, não se lhe aplicando o conceito de transcendência, da mesma forma em que é recusada qualquer significação ao termo “sobrenatural”.
A consciência do indivíduo humano como entidade distinta da natureza, oposição de sujeito a objecto no processo de apreensão cognitiva, ou de apropriação da natureza na forma de artefactos, pode fomentar um sentimento de separação, de isolamento e, no extremo, de solidão. A consciência da separação e a saudade do todo gera o fenómeno religioso que, de um ponto de vista etimológico, tem a ver com re-ligar, voltar a unir o que antes se separara. A religião naturalista consagra a atracção da parte pela parte, a afinidade universal e a sua ética baseia-se na compaixão, na empatia e no respeito por todos os seres.
O reencontro com Gaia, a grande mãe, é o único momento propiciador de paz interior e de verdadeiro sossego. Esbate-se a consciência das coisas, diluem-se as preocupações de circunstância, o sangue martela-nos as paredes dos vasos, os músculos retesam-se e alongam-se, as narinas inalam os odores da terra e das plantas aromáticas, todo o corpo faz-se um com a natureza.
Datas a celebrar: 22 de Abril, dia de Gaia (calha num sábado este ano); 5 de Junho, dia mundial do ambiente.
Calendário solar para 2006:
- Equinócio da Primavera às 18:26 de 20 de Março
- Solstício do Verão às 12:26 de 21 de Junho
- Equinócio do Outono às 04:03 de 23 de Setembro
- Solstício do Inverno às 00:22 de 22 de Dezembro
- Detalhes
Indo ver aos livros...
Do meu dicionário de português que, por sinal, até é baratucho:
Perdido (Lat. perditu). adj. Disperso; sumido; extraviado; naufragado; (Fig.) apaixonado em extremo; devasso; louco; corrupto; gasto em vão; esquecido; que não escapará (duma doença); s. m. coisa que se perdeu; pessoa corrompida, desgraçada.
A primeira lição que podemos tirar da leitura de um dicionário é que ele raras vezes nos é de alguma ajuda. É certo que em alguns contextos podemos dizer de alguem que ela é uma mulher "perdida". Entende-se logo que falamos de uma pessoa com má reputação, cuja conduta se manifesta de algum modo reprovável, que anda na "má vida". Aplica-se-lhe a significação de "devassa" ou a de "pessoa desgraçada". Há as oportunidades "perdidas" que são aquelas que passaram por nós e não as agarrámos. Coisas "perdidas" são aquelas a quem se lhes deu sumiço. Se ele tem uma doença terminal, então ele está "perdido". Está de cabeça "perdida" quando lhe deu uma qualquer maluqueira. Diz-se que uma pessoa está "perdida" nos seus raciocínios quando atinge um estado de tal falta de concentração e de ausência de objectivos que não é capaz de retornar a uma linha de raciocínio clara. Consoante os motivos, ela estará "extraviada" ou meramente "esquecida".
Está tudo muito bem, mas nada disto explica o sentido porque alguem se apelida, ou é apelidado, de "perdido". E, se o queremos saber, teremos que interrogar a pessoa que assim inicializou o uso da palavra nesse contexto numa acepção que não é permitida pelo dicionário.
Um véu já se tinha levantado sobre o assunto...
No meu blog de 14 de Fevereiro digo que "Em todas as histórias há uma criança que se perde (errare humanum est!). E nessas histórias erráticas é, geralmente, na floresta que as crianças se dão conta de estarem perdidas."
Por experiência e conhecimento acumulado, sei que cerca dos 4-5 anos todas as crianças se perdem, consistindo isso em afastar-se dos pais a tal ponto que, ou os pais perdem horas aflitos à sua procura, ou as próprias crianças sentem que perderam os referenciais e experimentam algumas dificuldades de conseguir o regresso para junto dos pais. Isto foi-me assegurado por diversos pais em consulta de psicologia infantil, assisti ou foram-me testemunhadas diversas situações de crianças perdidas na praia e até me recordo de uma situação em que estive pessoalmente envolvido, pois bem me recordo desse dia.
Seria de manhã, pois ainda não tinha almoçado. Decidi, eu e o meu amigo, que por certo andaria na minha faixa de idade, irmos conversando em passeio. O meu mundo era "a rua", uma pequena tira de estrada à frente do meu prédio limitada pelos cruzamentos com a rua 1 e a 2, assim se chamavam na altura. Dominava esse mundo tão bem como o mundo lá de casa do qual era uma extensão. Mas havia muito mundo ainda por explorar e eu estava confiante de que era capaz de o defrontar bastando, para tal, que o fizesse acompanhado por alguem que tivesse a mesma experiência e grau de confiança que as minhas, e não mais, para que de algum modo não apoucasse a façanha que eu me preparava para fazer. Conversando lá fomos, e a conversa entreteu-nos a um ponto que nem démos pelo passar do tempo nem pelo que se passava à nossa volta. Enquanto o tempo não passava pelas nossas cabeças, o passar do tempo moía as cabeças dos nossos pais. Bem procuraram eles por todos os lados. Percorreram muitos quilómetros.
Até que, finalmente, nos encontraram, "na boínha", como se diria hoje; e nós meio aparvalhados com tanta excitação nos adultos. Seriam cerca das três da tarde. Mas nós ainda não sabíamos nada disso das horas e dos relógios.
O que há que pensar de tudo isto?...
Voltemos à questão: porque é que as crianças se perdem? Para investigar esta questão procurei identificar um conjunto de proposições de que, após escrutínio mental, se possa afirmar sem sombra de dúvida (que cartesiano!) que são verdadeiras... ou, convenhamos, que tenham grandes probabilidades de sê-lo.
"As crianças perdem-se como resultado ...
1. do seu desenvolvimento cognitivo e emocional
2. do seu desenvolvimento motor
3. de uma excitação que os leva a procurar o risco
4. de uma ruptura gradual com o casulo protector da infância"
Vejamos cada uma de per se:
1. detendo uma maior capacidade para abarcar e processar informação, e sendo também capazes de mobilizar conhecimentos adequados, aumenta a auto-confiança e são compelidos pela curiosidade a explorar o meio envolvente.
2. as novas capacidades motoras, mormente na área da locomoção, não sincronizam as antigas capacidades de mapeamento espacial. A noção de tempo não integrada também não ajuda...
3. confrontar os medos, os fantasmas, o desconhecido gera uma excitação que leva a criança a defrontar cautelosamente o risco. Porém, a noção do risco não é ainda muito realista, levando a criança a arriscar mais do que imagina.
4. as necessidades de protecção e de autonomia procuram equilibrar-se num jogo de forças antagónico. Quando a criança força a autonomia, a necessidade de protecção sofre um abalo temporário.
Que vem então a ser "perdido"?...
Que as crianças se percam, tudo bem. É aquilo que se espera como episódico na fase de transição da pequena infância para a infância posterior. Que um adulto se perca, põe outras questões: um adulto já de algum modo estabilizou no seu desenvolvimento intelectual e motor; um adulto faz depender toda a excitação de actividades focalizadas como a carreira, a obtenção de riqueza ou de poder, o status e o reconhecimento social; a protecção e autonomia estão bem balanceadas num adulto por detrás das máscaras sociais.
Para mim, "perder-me" tem um sentido único: só é possível perdermo-nos no interior da floresta.
Um velho hábito leva-nos a distinguir metaforicamente entre a floresta e as árvores, como símbolos do colectivo e do individual, respectivamente - um todo não é uma colagem de partes singulares, um borrão não é um amontoado de riscos e de manchas, uma equipa não é um agregado de indivíduos.
Mas a metáfora é utilizada para realçar a utilidade e a beleza de abarcar a totalidade, a totalidade captada do seu exterior e contida na nossa compreensão. "O todo captado" diz-se em latim " conceptum", o conceito. Ver a floresta é conceber no sentido de "abarcar o todo". E sempre que vemos atentamente o todo, encontramo-nos, ou seja sabemos que não estamos perdidos.
Todavia, quando penetramos a floresta, perdemo-nos. Porque os caminhos da floresta, os caminhos de pé posto, estão lá para serem cruzados, não levam a parte nenhuma. Se passeamos na floresta, tanto vale seguir num sentido como no sentido contrário. O objectivo do nosso passeio não é convergir para um ponto preciso, dentro ou fora da floresta; é vaguear, é errar, é perdermo-nos. O objectivo é a acção, a agitação. "A totalidade do que é agitado" diz-se em latim "cogitatio", o pensamento.
O conceito fecha em si próprio aquilo que o pensamento abre.
- Detalhes
Aqui há tempos, estava a floresta orlada de brancas rosas bravas: a Nascente, as roseiras cobriam a vegetação cerrada dos sobreiros e dos carvalhos; a Poente, a vegetação rala das oliveiras.
Nascia o Sol a querer derreter o manto níveo perfumado e, já cansado o travesso, derramava, do outro lado do campo, uma pálida áurea poalha de luz sobre a olívea brancura. No centro, um frondoso espinheiro alvar (Crataegus oxyacanthia) erigia-se majestoso, em pleno desabrochar da flor que, com a sua brancura refulgente, lhe dá parte do nome. A outra parte vem-lhe dos espinhos de que, segunda a lenda, foi tecida a coroa de Jesus de Nazaré com a qual foi entronizado rei dos judeus.
O espinheiro alvar floresce em Maio e, a partir dos finais de Junho, no coração do verão, cobre-se da sua típica baga escarlate que atrai e endoidece a pipilante passarada. Diz quem estuda esta árvore mágica que as suas folhas, flores e bagas contêm uma variedade de bioflavonóides, como as prociamidinas oligoméricas, a vitexina, a quercetina e hiperósidos responsáveis pela sua acção benéfica sobre um vasto leque de problemas cardiovasculares, como a angina de peito, a aterosclerose, a insuficiência cardíaca e a hipertensão.
Lembro-me bem do dia em que foi, cujo ordinal associa a crendice ao azar. Estava, hipnotizado, a contemplar a copa florida do espinheiro rendilhada sobre o azul do céu. O Sol parecia-se com um disco de prata a fazer io-io sobre o espinheiro. Foi quando vi, na sua sombra, uma virgem.
E eu perguntei-lhe imediatamente se ela era virgem, só para confirmar, não fosse eu deixar-me levar pelas primeiras impressões. De facto, o seu rosto era de uma beleza não descritível por palavras humanas, mas com certeza de uma beleza que transcendia os limites da beleza humana. Uma pele e umas feições tão sem mácula que jamais poderiam ter sido tocadas por uma mão varonil. Um busto perfeito, cintura adelgaçada, ancas roliças e enxutas. Sem falsa modéstia e com ar seguro me asseverou que sim e que estivesse tranquilo: era virgem.
Algo se me afigurou inusitado naquela configuração. Uma virgem não pode aparecer debaixo de uma árvore. Perguntei-lhe, já que ela manifestava-se empenhada em responder às minhas perguntas: "ó virgem, porque é que não apareces antes na copa do espinheiro?". E ela respondeu-me com aquele sorrisinho virginal: " ó filho, se assim fosse não ganhava para o trabalho. Pousam aqui diariamente todo o tipo de aves e, não se sabe, alguma é portadora do virus ... Olha se me pico num espinho infectado?". A conversa não tinha grande lógica, nem parecia apropriada para o começo de uma aparição. Esqueci isso, e entabulei uma conversa sobre aparições seguras sob a copa do espinheiro.
- Detalhes
A cambada esteve assim, por muito e muito tempo, na traquinice do consistório. Aquilo por lá deu parlapié de bonda até que as coisas aqueceram. O bandoleiro, num desgoverno de contorcionista exaltado, armou uma bravata das antigas com enorme estardalhaço. Foi assim que o entrosado dueto assistiu a uma estereofonia de estampidos e de policromias, que nem era trapaça do olhar, nem era bandalheira do ouvir, mas era coisa mesmo sentida na carne.
Assim estiveram num repetido jogo do empurra, ao despique, empurrando ora dum lado, empurrando ora do outro. Ao cabo duns tempos mal medidos, já estafado da fofoca, o caceteiro tirou de esguelha o mariola do salmonete de dentro da alfarroba. Com a tacanhez de troglodita, puxou para dentro da malga a linguiça trapalhona: após o furibundo e desgastante raspanete, mais parecia uma lesma solteirona a trepar pelo reposteiro acima.
A provinciana, que se declarara sastefeita da galhofa da calcinha, como se diz no povão, despontou com indolência da bem-aventurança em que jazera.
Já o cretino do perdigueiro, antes de retirar o pirolito do cadafalso, lhe sorvera toda a fécula da leguminosa e deixara o queijinho de salga, por descaminho.