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Aquela primeira noite foi um começo, um arranque, metade esforço sofrido de principiante, metade prazer deleitoso de iniciado. Pouco mais havia que ver ou fazer. O manual reportava-se à classe 15 das máquinas Singer e não àquela especificamente. Havia pormenores que não encaixavam na máquina, umas peças a mais, outras a menos. A progressão das aprendizagens deveria de ser garantida, segura, controlada, progressiva, cumulativa. Enfim: disciplinada e profissional.
Quando voltei para Lisboa, tomei nota do número de série, baixei a máquina e fechei o móvel.
Na net fiz uma aturada pesquisa, seguindo um plano de busca antecipadamente traçado, que acabou coroada de sucesso.
Havia estipulado que o primeiro objectivo seria descobrir a marca na profusão de marcas lançadas no âmbito da classe modelo n.º 15. Através do número de série, soube que a mesma havia sido registada em 9 de Outubro de 1935 na fábrica de Kilbowie Clydebank, na Escócia. Esta informação, que pouco contribuía para a compreensão do seu mecanismo, era de importância genética crucial. Não só confirmava o 15 como classe de pertença, como permitia comparações com outras máquinas parentes apresentadas na net em blogues, leilões e fora. A data é crucial para estabelecer pequenas modificações, melhorias, reconhecer a sua notoriedade e estimar o seu valor coleccionista actual. É como estabelecer o grau de inbreeding entre parentes próximos para estimar o risco de uma patologia recessiva.
Mais tarde, descobri que aquela data situava-se no intervalo em que foram lançadas as 15K-88 e 15K-89. A destrinça era fácil: a 89 era uma variante portátil que, em vez de pedal, tinha um punho manual com que se fazia rodar o volante.
As pesquisas seguintes levaram-me a uma biblioteca digital do Smithsonian onde encontrei o manual específico da 15-88 que copiei, imprimi e encadernei com amor como se se tratasse de uma obra de arte.
Levaram-me também a revisitar o Smithsonian Castle no início do National Mall, à direita do monumento a Washington e quase em frente à White House, num recuo de 10 anos. Estava instalado em Arlington e à tardinha atravessava o Potomac de metro para visitar o centro JFK ou passear nos Constitution Gardens onde, com frequência, assistia a concertos dados por bandas militares a uma incontável assistência informalmente sentada nos relvados. Ali, pela primeira vez, ouvi conscientemente John Philip Sousa. Outras vezes ficava em Arlington a cirandar pelas catacumbas da cidade à cata de livros baratos, ou ia ao Cemitério Nacional ou rondava o Pentágono, nunca lhe chegando perto que isto de ter cara de árabe saudita, apesar de ser em 98, já não era carta de apresentação que se apresentasse na América. Não conto a história de como fiquei retido à entrada no terminal do aeroporto Ronald Reagan que isso dava enredo para novo filme.
Com o manual da 15-88 dava por concluída a primeira fase das minhas investigações que tão longe me conduziram, no espaço e no tempo. Porque a memória é o lugar de todos os lugares.
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Ao cabo de algum tempo, alimentado a paciência e motivação, lá tirei das águas internáuticas, a espernear e a mangar com as minhas parcas forças debilitadas pela longa espera, a Illustrated List of Parts for Nos. 15K88 to 15K91 Machines (a Trade Mark of the Singer Manufacturing Co.).
Em primeiro lugar, na preparação da preciosidade que tinha acabado de pescar, tive que fazer um trabalho compenetrado e muito rigoroso de assinalar as partes que respeitavam exclusivamente à 15K88, notando que alguns desses componentes apresentavam inúmeras versões, o que inevitavelmente conduziria a um trabalho comparativo ulterior in presentia. A lista está organizada em três partes: apresenta inicialmente um conjunto de prachas numeradas contendo cada uma diversas peças numeradas; depois, os componentes e acessórios por grupos de máquinas identificando-os nas respectivas pranchas; finalmente, a lista completa por ordem numérica.
Com o trabalho de casa feito, o trabalho da casa em Lisboa, esperava-me outra noite passada em branco lá para as bandas do Cartaxo.
Não vou deixar em suspense os leitores destes meus pensamentos à toa. Para desassossego, basta o que basta! Passemos já umas longas horas adiante.
Feitas as arrumações da tralha transportada de Lisboa para o Sítio, a preparação e o consumo do jantar e a ménagepostprandial da cozinha, cumprido o santo (?) sacrifício do telejornal da 2, fiz a ascensão ao piso supremo. Lá estava ela, no canto do mezaninho, devidamente recoberta com os paramentos com que viera. Dispus os manuais, os apontamentos, o caderno de notas e dois lápis bem afiados na secretária ao lado, empurrei o móvel para o centro do teatro anatómico e acendi os holofotes. The show must go on!
Com os cuidados devidos, desentranhei a máquina do seu covil no interior do móvel e erigia-a à posição normal, onde ficou, hierática e resplandescente. Preparei as ferramentas indispensáveis à operação que se seguiria, devidamente alinhados por alturas e calibres, num pano que estendi no chão que tinha ainda espaço suficiente para receber as peças desmontadas, dispostas pela sua devida ordem.
A mente cavalgou em vertigem desenfreada pelos desertos africanos, atravessou as florestas equatoriais e as savanas e começou a accionar o sistema de travagem a quase um quilómetro do sítio onde foi aterrar. Estava no meio da clareira da mata a meio da noite, a Lua Cheia africana a banhar aquilo de luz silenciosa, um silêncio inabitual que nem grilos nem relas ousavam desafiar, a não ser os mosquitos, esses vampiros maçadores e costumazes. Os tiros do lado de lá, aquele matraquear de costureirinha das Kalachnikovas acompanhado do crepitar fugaz, pararam, como tinham parado um quarto de hora atrás para depois recomeçar. Eu suava em bica, ajoelhado sobre o pano de tenda, a tentar desencravar a minha espingarda automática G3 (produzida na Fábrica de Braço de Prata sob licença da Heckler & Koch). Agora reduzia-se a um amontado disperso de componentes que desmanchara automaticamente, gesto tantas vezes repetido em Mafra, de olhos vendados no interior do Convento, ou em noite de Lua Nova algures na Tapada. Com o pano de limpeza esfregava metódicamente o interior dos 450 mm do seu cano e, com o mesmo rigor metódico, voltava a sua alma na direcção da Lua para inspeccionar a regularidade e a limpeza das estrias que garantiam uma velocidade de saída do projéctil (calibre 7.62 × 51 mm NATO) de 790 m/s.
Lá estavam no pano o mecanismo tensor da linha da agulha, a caixa da bobina, o pé calcador, a lançadeira, as molas, os parafusos, dispostos correctamente e convenientemente limpos. Registei no bloco de notas as peças que deveriam ser substituídas, voltei a montar tudo e comecei a lubrificação geral.
A lubrificação é, mais do que uma actividade operacional, um culto quase religioso, uma unção sagrada, um crisma. O primeiro cuidado do celebrante é conhecer todos os pontos a lubrificar. Tratando-se geralmente de orifícios, deve introduzir o bico da almotolia no ângulo correcto e bombá-la o número de vezes e com a pressão requerida de modo a que o óleo cai suavemente nas peças mais sensíveis. A lubrificação não se faz à vista do oficiante, ocorre no segredo interior da máquina; por isso, requer conhecimento e muita imaginação.
Com ela lubrificada, coloquei as linhas com o à vontade do expert, seleccionei um dos vários panos que tinha ali à mão, coloquei-o sob o pé calcador e baixei a alavanca. Puxei o volante na minha direcção, a agulha começou o seu vai-vem, os pés acompanharam o seu movimento no pedal. Truca-truca, truca-truca, truca-truca, ..., lá ia o pano correndo debaixo da agulha como se uma mão invisível o estivesse puxando.
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Jesus suspirou na cruz, foi sepultado, ressuscitou, passeou-se entre os vivos e subiu ao Céu. Era divino, quis ser humano, um projecto em vão!
Os seres humanos não o querem ser. Pelo menos, não pedem para o ser: são, depois logo se vê.
O corpo é, para o ser humano, o seu lugar imediato. Através do corpo, o ser humano sente, conhece o outro, contacta, partilha.
Jesus não se fez corpo, dizem as escrituras que fez-se carne. E assegura-o o Credo de Niceia: incarnatus est de Spiritu Sancto ex Maria Virgine.
Carne entra naquela categoria onde alinham também o peixe, as aves e a caça. É uma categoria alimentar cuja totalidade pode ser igualmente expressa pelo termo carne. Os que comem carne nesta genérica acepção dizem-se carnívoros. O Verbo fez-se carne, e não corpo. Na Última Ceia, Jesus diz: tomai deste pão, ele é a minha carne; tomai deste vinho, ele é o meu sangue. Está errada a tradução que põe na boca do Verbo incarnado as palavras hoc est corpus meum; a tradução correcta seria haec est car mea.
Na realidade, Cristo dá a sua carne a comer aos discípulos antes que esta seja entregue ao vermes. A carne é corruptível. Ou é consumida ou apodrece. Pode permanecer conservada longos períodos em regime de crioconservação porque o frio retarda, não os impedindo, os processos de degeneração. Se se acredita, como fazem os cristãos (credo [...] in carnis ressurrectionem) é na ressurreição da carne, não da ressurreição do corpo.
Para um ser bem terreno, o ser humano, o lugar da carne – como o do sangue - é o corpo, o prato, o frigorífico ou o cemitério. Nenhum destes lugares conveio à carne do divino encarnado. O único lugar encontrado com os requisitos aceitáveis foi o Céu. E lá foi a carne toda para o Céu. Ressuscitada e ascendida.
Teria o pénis de Jesus ido direitinho para o Céu? Sobre estas matérias não há como recorrer aos especialistas.
O teólogo seiscentista Leo Allatius (1586-1669), protegido de Gregório XV e guardião da Biblioteca do Vaticano, para além de ser o primeiro grande especialista em matéria de vampiros, foi também o autor de De Praeputio Domini Nostri Jesu Christi Diatriba obra fundamental que dirimiu, de uma vez por todas a controvérsia a respeito do local onde se encontrava o prepúcio de Jesus.
Tal controvérsia teve um grande impacte na Cristandade desde os seus primórdios. Sendo o Cristo judeu, foi circuncidado com oito dias de vida como mandava a lei mosaica. A circuncisão, ou mais correctamente a peritomia, consiste na remoção do prepúcio, a prega cutânea que cobre a glande do pénis. Entre os judeus, os bebés do sexo masculino eram circumcidados pelo chefe da família no oitavo dia de vida, em que o circunciso recebia também o nome, por se considerar essa a altura em que a excisão do prepúcio provocava uma menor hemorragia.
Onde foi então parar o prepúcio de Jesus? Teria sido enterrado como era hábito? Quando e como se reuniu aos restantes pedaços de carne ascendidos ao Céu? Teria ficado para trás, abandonado e esquecido? Diz-nos o Leo no De praeputio que também subiu aos Céus e que se teria transformado nos anéis de Saturno.
Mais estranho é o paradeiro de parte do seu sangue. Na pressa de retirar os sentenciados da cruz para anteceder os rituais funerários proibidos aos sábados, ou de modo a provocar a morte imediata, para lhes encurtar a lenta agonia, era costume rogar ao procurador romano a autorização para quebrar as pernas aos crucificados. No caso de Jesus não foi necessário por este já ter rendido o espírito ao seu divino Pai. À cautela, um dos soldados trespassou-lhe um dos lados, de onde jorrou sangue e água. Diz a lenda que José de Arimateia recolheu o precioso líquido no próprio cálice em que Jesus deu vinho a beber aos seus apóstolos dizendo-lhes bebei, este é o meu sangue. E que, mais tarde, teria levado o cálice (Graal, provavelmente do latim gradalis) para a Bretanha e guardado num esconderijo secreto para só ser descoberto por homens castos. Mas isto já são lendas para outras oportunidades.
Carne e sangue são pedaços de um corpo inabitado sujeitos a mutilação e dispersão no espaço e no tempo.
O corpo não tem espaço nem tempo. O corpo é Lugar e Época. O corpo é a história que nós criamos no lugar a que chamamos Vida. Que tem o epílogo na Memória.
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O verbo quis ser homem. Pegou num bocado de argila com que recobriu a sua essência. Não soprou lá para dentro porque todo ele era já espírito. Limitou-se a dizer: Eu sou o que sou, sou o Símbolo, o que une as pontas e faz o reconhecimento, o que introduz a convexidade do espírito na concavidade da carne.Com os dedos, premiu as pontas soltas do barro até fundi-las e sentiu-se aprisionado na carne.
O seu irmão Diábolo pegou-lhe então num braço e arrastou-o até ao deserto para o tentar. Se queres ser homem, como os humanos, dissocia. Faz como eu que separei a luz das trevas, o céu da terra, os continentes dos oceanos. E o filho do Eterno respondeu ao filho do Eterno: Eu sou o conceito, não separarei.E sete vezes o irmão o tentou, e sete vezes resistiu. Cansado e amargurado, deixou o deserto e voltou à cidade à procura de mulheres.
E com a mulher que infatigavelmente o desejava pernoitou. Quis tomar-lhe a carne e não sentiu o desejo. E a noite foi uma luta corpo a corpo. Ela exangue e infeliz. Ele suou sangue e, finalmente, sentiu na boca o amargo do fel e do vinagre. E desejou livrar-se do corpo casulo. Como uma crisálida rastejou para fora do sepulcro, bateu asas e subiu ao céu.
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in Os Monos
Os monos” (leia-se mônos) é o termo jocoso por que Perdido execra o monismo nas suas principais variantes, a saber: o monoteísmo, a monarquia, o monopólio e a monogamia. O monismo é o império do unitarismo pela defecção da variedade.
O monismo é uma espécie de pirâmide em que a contração do diverso no uno aumenta da base para o topo (processo de apropriação bottom-up) e se justifica no sentido inverso (processo de justificação top-down):
A monogamia é o processo unitarista mais elementar e significa “uma mulher para um homem”. Perdido não está propriamente a pensar na monogamia como algo que se possa opor à poligamia. Pelo contrário, a monogamia reforça a apropriação das mulheres que historicamente se começou através da poligamia. Com efeito, monogamia e poligamia opõem-se a monandria e poliandria que seriam, se tal existiu, um processo de apropriação inverso. Perdido pensa que a monogamia apenas permitiu um melhor controlo da mulher pelo homem do que a poligamia, não se afastando ambas da mesma essência. E que a monogamia conduz directamente à misoginia.
O monopólio tem uma natureza diversa pois visa a concentração de toda a riqueza nas mãos de um único detentor. Ao contrário da mulher a riqueza não tem singularidade, é um bem acumulável e fluido. A lógica do monopólio é a acumulação. Até hoje, traduziu-se em exploração da força do trabalho. No futuro, em que todo o trabalho será executado por máquinas, traduzir-se-á no extermínio (quase) completo da humanidade a favor da sobrevivência de uns poucos, os hiper-ricos.
A monarquia virá a ser todo o poder concentrado num estado único à escala mundial, provavelmente exercido sem acção humana e controlado pelo patriarca dos detentores do monopólio. Será a realização perfeita do “L’État c’est Moi”, do Quarto Reich. No passado e no presente, a monarquia camuflou-se sob as diferentes capas de oligarquia, tirania, monarquia hereditária, império e republicanismo. Todos estes regimes foram intervalados por períodos revolucionários em que o povo (a diversidade) se bateu pela apropriação do poder para a esfera do público (Res Publica). Todas as revoluções sossobraram no monarquismo com a apropriação privada da coisa pública. Não importa que os interesses privados se baseassem numa lógica de casta, de família, de interesse económico, de classe social, de corporação profissional ou outra qualquer. Fosse qual fosse o interessado, o regime era edificado para proteger o interesse que o sustentava. A democracia representativa é, no presente, a forma menos óbvia, mas a mais eficaz, de subtrair o poder ao povo de administrar a coisa pública e depositá-lo nas mãos de uma clique privada (partido, interesses, etc.). E é eficaz não propriamente pela eficiência do seu simulacro, as eleições. É eficaz porque revelou-se a forma mais rápida de subtrair o público para alargar o privado (“menos Estado”), confinando o público a meia dúzia de instrumentos de repressão: impostos e tribunais. As polícias, as milícias e os exércitos, esses vão desaparecendo também na vertigem das privatizações.
O que colocar no topo? Que cereja espetar no bolo? O que virá a ser a rolha desta garrafa de champanhe? O monoteísmo! O monoteísmo é o monopólio da divindade assacado por um deus. Fará isto sentido? É claro que faz todo o sentido: a melhor maneira de justificar o monismo no mundo existente, no mundo material, no mundo que conhecemos, é explicá-lo como um reflexo de um mundo monista de fantasia, de um mundo de natureza espiritual, de um mundo que não conhecemos, mas que nos é prodigiosamente revelado. A re-ligião, fundada na re-velação, explica o inexplicável e torna suportável todo o sofrimento humano. Quando o homem sofre (execuções em série, catástrofes naturais, epidemias, doença, fome à escala planetária, destruição ou esbanjamento dos recursos) é para expiar um pecado desconhecido e para merecer um mundo alternativo que lhe é oferecido. A mulher subordina-se ao homem como a igreja a cristo. Todo o poder vem de deus.
Perdido é de opinião que a ideia de deus único é o pensamento mais execrável jamais produzido em toda a história da humanidade, quer se trate do homem das barbas ciumento que castiga o seu povo eleito num acesso de fúria descontrolado, quer na forma da abstração moderna do inteligente desígnio.
Os textos aqui reproduzidos são apresentados cronologicamente segundo o seu aparecimento em O Tremontelo. São textos de natureza diversa, sem fim condutor ou unidade aparente. São fruto da “pesquisa errática” que Perdido tão acerrimamente defende.