Chegavam, geralmente, por altura das festas solsticiais: a maior parte vinha pelo Natal; o outro lote, pelo meu aniversário, em finais de Junho.
Dos meus pais recebia coisas que, se bem que desejadas e, às vezes, muito apreciadas, não as considerava brinquedos. Calçado, roupas e adereços eram distintivos que iam assinalando marcos do meu crescimento e que consagravam uma posição cada vez mais elevada e mais reforçada no mundo hierarquizado dos adultos e dos estavam em vias de sê-lo. Ocasionalmente, recebia sapatos para substituir os que já apertavam e magoavam os pés. Com mais frequência, davam-me meias novas cujos elásticos, estando em bom estado, impediam que elas me caissem pés abaixo. Iniciaram-me na camisa à homem, tão apertada no pescoço que sufocava. Com a camisa pude experimentar laços espantosos que me distinguiam dos meus contemporâneos por uma personalidade ímpar. Finalmente, um certo dia, já avançado no curso do meu crescimento, tive o direito às primeiras calças e pude,então, começar a pôr de lado os calções. À mistura com as coisas sérias vinha sempre o brinquedo, um carrinho ou uma camioneta de lata ou de madeira, alvo principal da minha motivação para me levantar cedo no dia de Natal e ir logo de corrida para a chaminé onde na véspera deixara os sapatos.
Eram os meus padrinhos que me davam mais brinquedos e não se limitavam a dar em datas previsíveis. Eram brinquedos muito preciosos, daqueles que nesses tempos não se viam senão, e muito raramente, nas montras das lojas caras e o meu uso deles acabou por ser muito cerceado pelas regras que me impunha a D. Ermelinda, a minha mãe, para evitar que brinquedos tão lindo e tão caros se estragassem. Do pouco que me resta para recordar, foi esse o caso de um magnífico tanque de guerra metálico, de proporções bastante avantajadas para o grosso do material circulante que populava o meu património. Dava-se-lhe corda e ele, girando sobre as suas lagartas, galgava por cima de todos os obstáculos que encontrava no terreno e ia faiscando chispas por uma vigia sob o canhão imponente. Coisas americanas! Estava-se nos primeiros anos do pós-guerra, já não havia as bichas para o carvão de que tanto ouvia falar, e o tanque estava ali para nos defender dos maus que faziam a guerra, que, se pudessem, nos levariam outra vez para os tempos da carestia de vida e da pneumónica. De tanta corda lhe ter dado, um dia ouvi-a a desbobinar freneticamente lá por dentro e percebi que tinha irreparavelmente perdido a tensão qure lhe permitia a marcha autónoma. A partir desse momento, o brinquedo perdeu o seu estatuto especial. Andava, mas só se fosse empurrado; disparava, se fizesse, como para os outros brinquedos banais, o pumpumpum com a boca. Eu próprio me sentia desclassificado, remetido para a banalidade do ser comum e vulgar. Já não dava, como dantes, para ir para as escadas, o mais longe que a minha mãe permitia, para mostrá-lo aos meus amigos. Já não dava para deixar cada um experimentá-lo, revelando a minha benevolência. Deixara de ser dono de um objecto ímpar e descobri, uma vez mais, a precariedade das coisas materiais e das circunstâncias da vida. Afinal, não estávamos assim tão bem defendidos da guerra como toda a gente pensava.
Recebia também brinquedos das “francesas”, de uns vizinhos sem filhos, dos meus tios do Entroncamento e de outros familiares, dos amigos que o meu pai arranjava com facilidade por todos os lados no seu giro por Benfica. Mas, momento importante e solene, com data marcada e espera prolongada e muda, era a festa do natal que os serviços sociais dos C.T.T. faziam todos os anos no Pavilhão dos Desportos para os filhos dos funcionários.
A excitação começava na manhã do dia anunciado.Tornava-se impaciência com as exigências e rigores de vestuário antes de sairmos de casa, alongava-se com a espera da camioneta do Eduardo Jorge, a lentidão com que subia o Monsanto e com que descia a autoestrada em direcção ao Marquês. Aqui chegados, começávamos a ver outras famílias a atravessarem o parque Eduardo VII, a descer a Fontes Pereira de Melo ou a atravessá-la vindos da avenida da Liberdade e a convergirem para o pavilhão. No átrio de entrada do pavilhão havia bancas, creio que por idades mas não estou muito seguro disso,onde o funcionário e a prole eram identificados e onde recebia a prenda, o lanche e o balão. Logo ali à entrada, havia já um arco-iris de balões colados ao tecto. Lá dentro, a ascenção iria ser de minuto a minuto, à medida em que cada um se punha a abrir a sua prenda e a familiarizar-se com o brinquedo. Havia um espectáculo, mas isso era coisa que interessava mais aos adultos que se fartavam de rir com a exibição dos palhaços.
Nem todos os brinquedos eram oferecidos e apareciam com data marcada. Para começar,havia os produtos de marketing, que na altura se chamavam reclames, como o brinquedo de plástico de pequenas dimensões que vinha no interior da caixa da farinha Amparo, cujas papas comíamos matinalmente às pazadas para acelerar a reposição da caixa. Os cromos com as efígies dos jogadores de futebol (o Travassos, o Coluna, o Vicente, o Matateu, o Costa Pereira,o Virgílio, o Águas, o Eusébio e o Peyroteo) vinham a envelopar os rebuçados ou dropes que comprávamos com as nossas economias. Recortávamo-los de modo a caberem no interior das caricas das bebidas e jogávamos com elas num campo de futebol desenhado no chão, uma espécie de matraquilhos em campo accionados à “berlaitada”. Havia os soldadinhos de plástico, versão pobre a emitar os de chumbo, em casernas onde coabitavam soldados romanos, com índios e tropas SS. Havia os bilas, para os quais as nossas mães confeccionavam sacos de pano para evitar que rompêssemos os bolsos dos calções,havia os piões de madeira que, depois de lançados, aparávamos com a mão para picar os dos outros, as “chichas” ou bolas pequenas de borracha para todo o tipo de jogos de bola, a fisga, as pistolas com coldres e mascarilha para jogar aos “cábois”. Outros eram confeccionados por nós, com ou sem a ajuda de adultos: o avião de papel, o arco e as flexas de índio, o punhal e a espada, o escudo, os arcos de jogar ao arco que empurrávamos com uma gancheta e os carrinhos de madeira com rodas de esferas com que adestrávamos as perícias de pequenos fangios nas descidas íngremes das ruas 2 e 4.
O brinquedo era sempre mais interessante quando artesanado por nós. Eu tinha uma predilecção particular por inventar coisas. Transformar um objecto utilitário do quotidiano em brinquedo era um passo maravilhoso de magia. A minha preferida era transformar as molas de madeira de estender a roupa em exércitos que deslocava no extenso corredor de oito metros da minha casa. A D. Ermelinda é que não gostava mesmo nada disso: passar as molas pelo chão que as pessoas pisavam não era o mais adequado para pendurar a roupa acabada de lavar. O pior era que eu pintava cada mola com divisas, galões e insígnias daquilo que eu imaginava serem as patentes e as armas dos exércitos. Aquelas pobre almas arrastavam-se pelo chão no ataque a fortes inexpugnáveis construídos com caixas de sapados com ameias recortadas à tesourada. E eram rejeitados pelos defensores a poder de berlindes, as armas de arremesso de que ambos os contendores dispunham.
Não eram metamorfoses, porque as coisas não mudavam de forma: a cada momento mudavam de significado. Por detrás do significado expresso de cada coisa, havia uma série de significados encobertos predispostos a revelarem-se se assim a gente o quisesse. Quando descobri que as minhas acções alteravam o significado às coisas comecei a construir o meu próprio mundo e nunca mais o larguei. Tornou-se um casulo que não parei de construir e reconstruir. E como vim também a descobrir que não estava sozinho a construir mundos, o universo converteu-se numa cornucópia de mundos.