Com seis anos fresquinhos, o meu pai inscreveu-me na Escola Normal. O Magistério Primário de Lisboa, assim se chamava na altura, era uma instituição de formação de professores primários que funcionava a par da escola primária aberta às crianças da comunidade. Fora construída no alto de um imenso descampado, situado na antiga Quinta de Marrocos, nas traseiras da Avenida Gomes Pereira, e tinha acesso, quer pela estrada de Benfica, passando ao lado do quartel dos bombeiros, quer, andando pelo lado oposto, pela estação de Benfica, por onde eu vinha e regressava diariamente a casa. A segunda circular, que descaracterizou completa e irremediavelmente o local, só viria a ser construída no início da década seguinte.
Dizem alguns entendidos, e vê-se escrito a torto e a direito, que a saída de casa para a escola é um evento traumático. Baseiam-se estas suposições no facto indesmentível de que a criança é separada das pessoas e dos lugares conhecidos para se defrontar com pessoas e lugares estranhos e de que, facto provavelmente desmentível, passa a ter exigências e normas de conduta quando a vida era, dantes, de regabofe e libertinagem. A reflexão, o conhecimento científico e a experiência de vida conduziram-me a uma desconfiança radical relativa às teorias psicológicas populares e a só dar como assente, e até prova em contrário, a teorias baseadas em pressupostos sólidos e que resistem, de acordo com o método experimental, ao confronto com os factos empíricos. O medo face aos estranhos e o pavor de se perder em lugares desconhecidos são factos bem estabelecidos, mas ocorrem em períodos da vida muito precoces, nos primeiros meses de vida. A partir daí, as crianças alargam o conhecimento do espaço periférico, desenvolvem teorias cognitivas sobre o mundo físico e humano, começam a diferenciar as intenções dos estranhos, tomam gradualmente consciência dos riscos envolvidos e adoptam estratégias de afrontamento do novo e desconhecido, sobretudo as estratégias desenvolvidas em regime de manada. E é em regime de manada que se imagina e testa novas normas de conduta social. As brincadeiras em bando nas ruas do bairro tinham tido esse papel e a nova vida social era relativamente emancipadora às normas castradoras da vida em casa e em família. O certo é que não experimentei com a minha ida para a escola nada de constrangedor e ela foi, até certo ponto, uma libertação.
Além disso, o novo exercia um enorme fascínio, tão excitante como a descoberta de novos mundos, a exploração de continentes, a descoberta de raças e civilizações exóticas com que me fora familiarizando nas minhas leituras infantis e nos livros aos quadradinhos.
Foi uma festa e uma excitação o período que antecedeu o início das aulas. Para além dos brinquedos, e das roupas e do calçado que se me colavam ao corpo e que para mim eram transparentes, alarguei o meu espólio de pertences materiais. Vieram os primeiros lápis, de marca Viarco, que tresandavam de cheirinho bom quando eram aparados, as primeiras borrachas de dupla função, parte para apagar lápis, parte para apagar tinta e rasgar o papel, e o afia-lápis de metal e meia dúzia de lápis de côr de tamanho reduzido. Tudo para guardar numa caixa rasa de madeira com uma tampa de correr, pois o meu grande desgosto e desilusão foi nunca ter tido, até hoje – note-se!, uma caixa de segundo andar como os autocarros verdes da Carris. Mais tarde tive a minha caneta de aparo, que mergulhava nos tinteiros brancos inseridos nos tampos das carteiras para molhar a ponta, e o respectivo mata-borrão para me livrar dos excessos de tinta. A primeira caneta de tinta permanente, uma Parker, deu-ma o meu pai quando fiz o exame da quarta classe. Tive, nessa altura, o meu primeiro caderno de duas linhas para o treino da caligrafia e a sebenta para os números, as contas e os desenhos. O busilis era acartar com a ardósia que fazia peso e usá-la porque embirrei logo com ela na primeira utilização: o risco nunca saía como desejado e fazia um sonho de arranhado que me molestava. Só me voltei a lembrar da ardósia muitos anos mais tarde quando peguei pela primeira vez no meu iPad Retina. Ah! Como tinha evoluído a tecnologia do quadro portátil! Tudo isto ia dentro dentro de uma pasta que palmilhava comigo aqueles quilómetros que distavam da minha casa à escola, tal como a lancheira onde iam os víveres para o mata-bicho.
E os livros? Pois, os livros! Já estava familiarizado com eles, mas o que já ia lendo, os da colecção Formiguinha, eram mais pequeninos e levezinhos. O Livro da Primeira Classe, assim se chamava o meu primeiro livro. Tinha uma capa de amarelo-torrado debruada com quatro fileiras de glifos decorativos castanhos a simular ramos de folhas alternadas. Nos dois terços superiores, a imagem de um casal de pequenotes, provavelmente irmãos, ele, que aparenta ter uns aninhos mais, passa um braço protector sobre o ombro da loirita de laçarote azul e com a outra mão ajuda a soerguer o livro que ela, a Raquel, parece soletrar. Logo numa das primeiras páginas o “a e i o u”, cada letra a vermelho em correspondência com uma imagem, o “a” com as águias do Benfica, o “e” com um “cavalo”, o “i” com uma igreja, o “o” com um ninho com cinco ovos e o “u” com um cacho de uvas. Na altura, não percebi essa do “e” estar relacionado com o cavalo e, apesar da insistência dos adultos a explicar que se tratava de uma égua, e que esta era a mulher do cavalo, eu não ligava muito à questão do género que só me veio a interessar por alturas da quarta classe quando comecei a brincar aos maridos com as colegas. Quando, alguns anos mais tarde, me interessei pela evolução das linguas românicas, percebi que a língua latina dispunha muitas vezes de duas palavras distintas para designar o mesmo objecto, como “caballus” e “equus” para designar o cavalo, “catus” e “felix” para designar o gato. Daí, o terem aparecido termos como “égua” e “felino”. Mas esta explicação, bastante simples e elucidativa, veio demasiado tarde para esclarecer o mistério do “e”. Também comecei a entender que, quando os adultos começavam a engasgar explicações para os mistérios que eu procurava esclarecimento, o assunto metia geralmente sexo.
Durante os três anos que frequentei a Escola Normal as minhas professoras chamavam-se alunas e todos os semestres tinha duas ou três alunas diferentes. O Estado procurava assegurar que vinham de boas famílias, católicas e patrióticas, e que eram donzelas puras e de reputação imaculada. Sendo a sua elevada missão a de educar sãmente os rebentos da mocidade, assim deviam permanecer castas de pensamento, palavras e acções. Não estavam autorizadas a namorar. Quando já professoras tinham que pedir autorização para casar ou para viajar para o estrangeiro. Nesses tempos, eu não sabia disso. Mas achava as alunas muito simpáticas, carinhosas e dedicadas.
Um bom exemplo disso foi quando, certo dia, na violência dos recreios, levei um pontapé nas partes e fiquei a sangrar devido a uma ferida profunda na glande. Chorei, assustado pelo sangue, e fui logo conduzido à aluna de serviço que me conduziu à casa de banho, me lavou e desinfectou, e, para me distrair do susto, pôs-se-me a fazer carícias no órgão que entumesceu, o que provocou uma dôr fininha, estancou a sangria e me deu uma paz profunda. Pediu-me que viesse mostrar no dia a seguir para ver se já estava sarado. Como fiquei logo sarado, não mostrei. Mas nunca mais me esqueci da exaltação daquele momento.
Nos primeiros meses, ia e vinha acompanhado pela minha mãe. Nos meses seguintes, as mães começaram a cooperar para conduzir as ninhadas à escola. Passados tempos, comecei a ir e a vir acompanhado com os meus colegas do bairro. Andávamos com uma bata que só tirávamos quando chegávamos a casa. A minha mãe esforçava-se por trazer as minhas batas de um branco alvíssimo e impecavelmente engomadas e impunha-me o esforço de não as sujar ou enrugar. Eu perguntava-me a mim próprio se não valeriam bem os puxões de orelha que levava todos os dias em troca de poder brincar à vontade e enxovalhar a porcaria da bata. Até porque produzia danos colaterais. Era costume a escola dar pelo Natal brinquedos aos meninos pobres. Eu não recebia nada porque era rico: tinha a bata sempre engomada e andava sempre calçado. Não foi sem razão ou motivo que em adulto odiei sempre as fardas, as gravatas e os fatos caros. A roupa que nos espartilha os corpos também nos espatilha as vidas e cerceia as liberdades.