Comecei a ler com o meu pai quando ele começou a ler-me a Página Infantil do Diário Popular. A fabulosa capacidade que ele tinha de extrair histórias engraçadíssimas daquelas garatujas entusiasmava-me. No dia a seguir, ele ia para o trabalho e eu ficava em casa sentado no corredor a contemplar os desenhos do José de Lemos. Punha o dedo em cima da página do jornal e ia navegando letra a letra, palavra a palavra, enquanto recontava para mim próprio de memória a estória que ouvira ler na véspera.
Decidi, então, que também sabia ler. A partir dali, só tinha que conhecer as letras e aprender a técnica de juntá-las para formar palavras, um pormenor com que fui lidando, pouco a pouco e sem esforço, com a ajuda do meu pai. Aos cinco anos já lia umas coisas, mas aos seis fui para a escola desaprender a ler.
Por esta altura, já não brincava só no quintal e ia todos os dias brincar para a rua com os outros meninos que eram, mais ano, menos ano, da minha idade. Quando éramos ainda muito pequenos, brincar consistia em juntarmo-nos em pequenos bandos e trocar experiências. No fundo, íamos comprovando que a vida lá em casa não era muito diferente da dos outros, e percebendo que os adultos, ou seja os pais, se tinham contagiado todos com as mesmas manias. Outras vezes falávamos dos nossos brinquedos e, quando nos deixavam trazê-los connosco para a rua, fazíamos trocas temporárias.
Quando mais crescidos, alargámos os nossos interesses aos jogos tradicionais que requeriam competências sociais muito complexas, como compreender regras e ser capaz de aceitá-las. Brincava-se à apanhada e às escondidas que não requeriam um número certo de gente, eram jogos mistos e tinham regras simples. Não por tabu, mas por uma inexplicável questão de preferências, havia também jogos para cada sexo: A macaca era o jogo preferido das meninas e o bilas e as caricas eram jogados quase sempre pelos miúdos. Mais para a tardinha do dia, quando já andava a malta toda na escola, jogava-se ao mata, ao ringue, à cabra cega, ao rei manda, à mamã dá licença. O jogo final, o ringue, começava quando as francesas chegavam do liceu. O Sr. Francisco arrumava o carro em cima do passeio um pouco mais à frente da casa para nos dar espaço e elas corriam a casa a pôr as malas e a buscar o ringue de borracha. A rua era um enorme rectângulo ocupado pela malta miúda, cerca de uma vintena, que ria corria, suava, afogueava-se. A coisa acabava sempre da pior maneira. Uma a uma, as mães vinham à janela chamar para jantar. A resposta, invariável, era: “Mãe, já vou. É só mais um bocadinho!”. E invariavelmente, a mãe respondia: “Não te volto a chamar.” O que a ser verdade nos daria uma grande felicidade. Um a um, íamos desertando com a promessa firme de que voltar no dia seguinte.
No rés-do-chão, no lado oposto ao dos meus pais, moravam as francesas. Assim se referiam a esses nossos vizinhos as pessoas do bairro. Mas, na realidade, apenas a mãe, ou a Madame como nós a tratávamos, era francesa, natural da Alsácia. A Gabi e a Lenoca eram bem portuguesas, filhas da Madame e do Sr. Francisco, creio que motorista da embaixada americana.
As francesas teriam provavelmente nascido noutro lado mas vieram para aquela casa muito novinhas. Eram uns anos mais velhas do que eu e decidiram, portanto, adoptar-me. Como iam todas as manhãs dos dias de semana para o liceu Charles Lepierre, eu ficava sozinho no quarto delas a consumir tudo o que me era possível naquela imensa biblioteca infantil. Um a um, li os livros todos da colecção Formiguinha, de pequeno formato, alinhados na estante à cabeceira das camas delas. Depois, comecei a ler livros maiores de outras colecções da Majora, onde o bom alinhavo da narrativa se casava sempre bem com o grafismo espantoso das suas ilustrações. Mais tarde, já andava adiantado na escola, entrei pela colecção Salgari a dentro devorando os sandokans e os tigres da Malásia. De outros livros, lembro-me dos do Walter Scott e dos Cinco e de como olhava de soslaio para os romances policiais do Sr. Francisco, arrumadinhos numa estante da sala ao lado do enorme sofá onde eu me afundava a ler as minhas carochinhas.
Lia avidamente todos os dias, todas as horas, todos os minutos. A meio da tarde, a minha mãe chamava-me para lanchar. Como excelente cozinheira que era, preparava saborosas iguarias para me atrair a casa. As miúdas galgavam as escadas acima, lambareiras e, como térmitas esfomeadas, limpavam a mesa da merenda sem deixar migalha. Cada vez, a minha mãe fazia mais, diversificava e sofisticava. Eu é que nada, deixava-me ficar, o meu propósito era aproveitar o tempo para ler, ali mesmo na cozinha onde a Madame, com o seu ar austero e o seu português germanizado, passava a ferro enquanto eu comia o lanche que me preparara, frugal mas suficiente e com paladares que eu nunca tinha experimentado. Ao jantar o meu pai ouvia as queixas e as recriminações da minha mãe e ficava a saber o ingrato que eu era. E desfazia na francesa, que não sabia cozinhar, ela e ele tão magricelas, com as miúdas a passarem fome de rabo, que aquilo até era um gosto vê-las comer.
O ponto alto do meu programa de leituras era ao sábado quando vinha o Sr. Américo, o jornaleiro, trazer o Século ao Sr. Francisco e deixava para as meninas a edição semanal do Cavaleiro Andante. O cavaleiro andante era uma revista de bonecos, ou de banda desenhada como hoje se chama. Como elas eram umas miúdas arrapazadas ou cavalonas, segundo os ditos da altura, queriam era andar na rua e quem estreava o Cavaleiro Andante era eu. Mais tarde apareceram outras revistas, como o Falcão e o Condor Popular com estórias completas, mas o Cavaleiro andante apenas trazia uma ou duas páginas de cada história, algumas mesmo intrigantes como o Mistério da Grande Pirâmide ou a Marca Amarela com o Blake e o Mortimer, outras deslumbrantes como o Tim-tim na Lua, o Lotus Azul ou o Tim-tim na América do Norte, discronias maravilhosas como Um Americano na Corte do Rei Artur, o devendar dos mistérios de África, o imaginário bíblico em o David Pastor da Judeia, índios e cowboys em Regresso de Sitting Bull, e uma galeria de heróis como o Tarzan, o Zorro, o Mascarilha, o Robin dos Bosques, o Marco Polo, o Davy Crockett, o Lucky Luke, o Billy the Kid, o Michel Vaillant, o Asterix e mais. Uma página ou duas era pouco para satisfazer um espírito ávido, despertava uma estranha ansiedade que me acompanhava durante mais uma semana de espera.
Quando as francesas chegavam da escola punham-se a ensinar-me francês. Aprendi, então, a recitar de cor:
Un deux trois
Je m’en vais au bois
Quatre cinq six
Cueillir des cerises
Sept huit neuf
Dans mon panier neuf
Dix onze douze
Elles seront toutes rouges
Chique, mesmo chique! Mas não tocava piano.
Na escola não lia coisa de jeito. Ao fim de um ano soletrava coisas como “O PA-PÁ PA-POU O PI-PI DA TI-TI”, mas aquilo não me dizia nada e decidi não colaborar. Na terceira classe já devorava tudo o que fosse botânica ou zoologia. Os estudos comparativos e as sistemáticas interessavam-me. Foi um prelúdio do meu interesse pelo evolucionismo. A história também, de certo modo: saber os reis de todas as dinastias e os respectivos cognomes era obra, mas não passava de um exercício de equilibrismo intelectual: aqueles reis não chegavam aos calcanhares dos reis, rainhas, princesas e príncipes das minhas primeiras estórias. A realidade só ultrapassou a imaginação, e comoveu-me deveras, com a leitura nas páginas dos jornais da morte da Princesa Diana.