A telefonia, a que os puristas chamavam TSF como mesmo zelo e convicção com que hoje falamos de wireless para nos referirmos a todas as tecnologias em vias de desmaterialização, era uma caixa em forma de paralelepípedo, já não sei se de madeira ou a imitar madeira, por onde ouvíamos a rádio. Se, em termos materiais, não passava de um caixote contendo válvulas, bobinas, capacitor, resistor e altifalante montados sobre um chassi de chapa, engenhocas que só se descortinavam a custo se espreitássemos, como era meu hábito de garoto, através dos orifícios da parte traseira, pouco ligávamos àqueles “miúdos”, vísceras que só os electricistas entendiam e sabiam reparar. Para nós, família e vizinhança, que éramos gente simples, aquilo tinha como que vida, um certo tipo de animação com que interagíamos através do rosto onde se destacava uma folha por onde saía o som, de palhinha entrelaçada protegida por umas barras verticais de plástico ou madeira, duas réguas graduadas e um ponteiro, rectro-iluminados, para orientar a sintonia das ondas médias ou curtas e dois botões laterais, o da esquerda para regular a intensidade do som e o da direita para sintonizar. Como um cão ou um gato, fazia parte da família. E tinha nome, nome estrangeiro que em Portugal um nome estrangeiro ou simplesmente estrangeirado sempre conferiu dignidade às coisas e às pessoas: Philips. Tinha uma tal centralidade que estava sempre no balcão da cozinha, por cima da gavetas do pão e dos talheres, agarrada pela trela a uma tomada da parede junto à mesa onde habitualmente nos reuníamos para comer, conversar e ... ouvir a telefonia.
Quanto às telefonias não terem fios tem que se lhe diga: tinham e não tinham. Ao contrário do telefone e do telégrafo, que enviavam sinais electromagnéticos através de fios, a radiodifusão ou broadcasting transmitia electromagneticamente através do espaço, difundindo de um para muitos, da estação emissora para os múltiplos aparelhos receptores na posse dos rádio-ouvintes, as telefonias. Estas alimentavam-se de electricidade e, por essa razão, precisavam de um cabo para se ligarem à corrente eléctrica do edifício. Mais tarde, já tinha deixado para trás a minha infância, começaram a ser comercializadas telefonias portáteis a pilhas. Já nessa altura a voragem tecnológica ditava a obsolescência dos equipamentos mas não à velocidade com que hoje em dia encomendamos um equipamento pela eBay que, quando chega de avião, já está obsoleto. Há um significado nesta diferença: dantes a telefonia servia para ouvir, hoje serve para ter e mostrar. Assim se cumpre a profecia de que a mensagem é o medium. Nessa altura de profanação mediática, os meus pais desfizeram-se da velha Philips, que era um altar familiar, e adquiriram um trambolho plastificado com pega que podia ser levado para a praia ou para os picnics do Monsanto ou da mata de Benfica.
Até agora, apenas falámos do receptor, o tal objecto de estimação que pontificava lá em casa. Mas este não funcionava sem estação emissora e, por isso, cuidemos de ver qual era a situação na altura.
Entre o fim da I Guerra Mundial e o início dos anos 30, decorrera um período inaugural de radio-amadorismo. A partir daí, as estações de rádio em onda média já existentes começaram a agregar-se e a dar origem às estações comerciais e foram criadas estações profissionais novas. As estações de rádio localizadas na área de Lisboa e que acompanharam a minha meninice haviam sido fundadas na década anterior à do meu nascimento: o Rádio Clube Português, a Emissora Nacional e a Renascença.
O Rádio Clube Português, com estúdios e antena emissora na linha de Cascais, pertencia a Jorge Botelho Moniz, um oficial republicano ultra-conservador que apoiou sucessivamente o golpe militar de Sidónio Pais, o neo-sidonismo, a ditadura militar e o regime salazarista. Comandou a repressão da revolta da Madeira, apoiou os nacionalistas de Franco na guerra civil espanhola através da constituição e envio do corpo militar de voluntários portugueses, os Viriatos, e criou a Legião Portuguesa. A estação, fundada em 1931, nascera claramente com o intuito de fazer a propaganda do regime e tornou-se uma voz activa no conflito aqui ao lado, emitindo em castelhano, pela voz de Marisabel, para os nacionalistas espanhóis. Pioneira na rádio, também foi pioneira na televisão ao associar-se ao Estado, como segunda maior accionista, à fundação em 1955 da Rádio Televisão Portuguesa, a primeira estação portuguesa de televisão. Ironicamente, foi através dos seus microfones, na madrugada do 25 de Abril de 1974, que o Movimento das Forças Armadas transmitiu ao País o seu primeiro comunicado pondo em marcha a derrocada do regime que a estação sempre apoiara.
Sob o impulso do eng. Duarte Pacheco são realizadas as primeiras emissões experimentais, em 1932 em onda média e em 1934 em onda curta, da Emissora Nacional de Radiodifusão, inaugurada oficialmente em 1935, sob a tutela da Direcção Geral dos CTT, e tornada organismo autónomo em 1940.
A revista “Renascença - Ilustração Católica” faz apelo desde 1933 à criação de uma “Emissora Católica Portuguesa”. A Rádio Renascença realiza as edições experimentais de onda média e onda curta, respectivamente em 1936 e 1937 e, no ano seguinte, é finalmente inaugurada.
Na II Guerra Mundial, o Governo mandou encerrar todas as estações emissoras particulares, autorizando a título especial o funcionamento de algumas estações profissionais entre as quais o Rádio Clube e a Renascença. Esta proibição só foi levantada em 1947.
Da janela da sala de jantar via perfilarem-se ao fundo várias antenas. Em frente, no topo do Monsanto as antenas da marinha e à direita, na base do Monsanto perto do bairro da Boavista, as da Renascença. As duas antenas da renascença ladeavam um vasto edifício de dois andares no meio das searas. Passei por lá várias vezes com o meu pai quando ia pagar a renda ao senhorio que morava numa quinta de saloios lá ao lado. José Bento, assim se chamava o senhor, era o proprietário do prédio onde eu morava, o JB da rua 3. Ouvi dizer que era proprietário de outros prédios, quer no bairro, quer na Adamaia. Mas, indo à quinta não se dava por isso. Lá dentro, nas divisões de terra batida, a iluminação era de queima, não sei se de petróleo, se de azeite, a bicharada de capoeira andava por ali em convívio pacífico com os donos e as pessoas andavam descalças e vestiam-se rudemente. Um dos filhos, que era azeiteiro, passava com frequência lá na rua, de faixa, colete e barrete pretos, a segurar pela trela o muar que puxava a carroça profusamente pintada de cores vivas. Apregoava os produtos da horta – tomate, alhos, nabos, couves, cenouras, pimentos – e as pessoas aviavam-se de azeite saloio que era transportado numas latas cilíndricas enormes. O homem, ao que constava porque eu nunca entretive conversas ele, era analfabeto e não sabia nada dos prédios do pai. Moravam, então, ali ao lado e, por certo, nunca ouviram rádio. Mais crescidinho, cheguei a ir à Renascença a passear a pé, sozinho ou acompanhado. Era um dos últimos sítios até onde se podia ir. Para além, era terra incognita.
Nasci e estavam reunidas todas as condições para ter uma infância ligada à rádio. Juntamente com a leitura, a rádio contribuiu para dar forma àquilo que fui como criança. E de algum modo a algo que ainda hoje sou.
Continua no próximo postal (as pessoas da rádio, os programas, a música, os noticiários, o teatro radiofónico e a rádio proibida)