Madrid, 10 de Maio.
Os objectos do lobby do hotel estão dispostos como adereços num palco de teatro. Domina aquele cheiro enjoativo que é o default da cozinha espanhola. Ouvem-se vozes vindas de todos os cantos, gritados, como um tagarelar cantado, com trechos parecidos com o português falado por gente com graves lesões espalhadas pelo aparelho fonatório. Estou incómodo na minha posição. Doem-me as costas e o rabo. Por baixo da carne assada, esmagada contra a superficie do sofá, os ossos gritam, revoltados e doridos. Entretanto, chega a Graça.
Para mim, todos os dias de regresso por avião são dias de cansaço. Não sou muito de viajar, mas é geralmente assim. Há muito que percebi que não vale a pena vir muito tarde: O dia de regresso, curto ou longo, nunca se aproveita.
Tudo começou quando a Graça foi convidada para participar um acto profissional a ocorrer em Madrid. Propus-me acompanhá-la tendo em mira dar um saltinho ao Real Jardim Botânico. Dois dias inúteis a escriturar no Deve das viagens de ida e vinda e um proveitoso no Haver do turismo botânico.
O voo para Madrid correu, ao contrário do esperado, razoavelmente bem. Receava que as pressões das alturas agravassem o meu estado vertiginoso; mas não foi o que aconteceu: as vertigens e os enjoos afundaram-se pelo indolente alçapão do olvídio e aquela sensação de obstrução dos tímpanos (" aquela" é um termo reservado para os que sabem) deu lugar a uma sensação de conforto nunca antes sentida, como um balão mirrado em que alguém insuflara ar violenta e convincentemente renovando-lhe a vida.
A Graça comentou, na altura, que era uma razão para viajarmos mais vezes. Eu acho que ela só pensa em extirpar-me as raízes e tirar-me lá do Tremontelo e do meu sagrado descanso. Mas, como repetir aquela boa sensação era, na altura, o que eu mais desejava, disse que sim. Pensando bem, o que perdia eu em testar essa teoria?
A última grande viagem de meados de agosto a princípios de Setembro de 2019 tinha-me levado ao Arnold Arboretum e aos jardins públicos de Boston. Foram duas semanas de férias excepcionais com extensas e prolongadas caminhadas naquela mata fabulosa. As coisas, porém, começaram a correr mal uma ou duas semanas depois da chegada a Lisboa e de me reinstalar nas tarefas agro-silvícolas do Tremontelo. O intestino grosso, principalmente na extremidade anal, estava feito em vulcão pronto a expelir toda a lava ferrosa que conseguisse albergar na veia hemorroida. Ser hipercoagulado só complicava o quadro.
O meu quotidiano alterou-se radicalmente. Comecei a usar uns quantos pensos higiénicos que andavam lá por casa em desuso. Depois, incluí pensos na lista das compras do supermercado. Comprei slips mais ajustados e com elásticos reforçados. Experimentei novos detergentes para disfarçar as nódoas nas traseiras das calças. As tantas isto era só cosmética. A hipermenorreia incomodava-me muito mais, obviamente, por razões de saúde.
A princípio, nada notei. Aos poucos, começou a instalar-se um desconforto generalizado. Incomodavam-me os contactos sociais e comecei a dispensar o uso de todos os meios de comunicação: redes sociais, blogue, telefone, email. Qualquer estimulação em excesso (em termos relativos aos meus limiares de tolerância) me provocava dores de cabeça e indisposição anímica. Os gatos escorraçava-os, farto das suas chamadas de atenção. Dispensei o treino físico nas máquinas e descurei os trabalhos de exterior. Subir as escadas tornou-se um esforço hercúleo. Deitava-me com frequência. Dormia de dia e tinha insónias de noite.