Escrevi atrás: “ O que de específico se vislumbra no caso mental português é o facto de não termos uma elite, um escol, uma classe elevada de condutores. Temos, a ocupar o seu lugar, os “grandes”: a desaristocracia do desenrascanço bacoco dos patos bravos de todas as áreas e actividades económicas, [...]”.
Assistimos, nestes dias que passam, tristes e sem fim à vista, ao blockout dos camionistas. Dá-se a ver um espectáculo aterrador, de telejornalismo de catástrofe, um cenário de ante-estreia de guerra civil. Um punhado de salteadores de estrada armaram a cilada a um Estado fraco, incompetente e desautorizado e preparam-se para se apossar, pela força bruta e acéfala de que dispõem, de parte das escassas economias do Orçamento, que é dinheiro nosso, do povo que trabalha, que se cansa, que desconta e que espera, no infortúnio da doença, da incapacidade, do desemprego ou da velhice e viuvez, que a Nação lhe mitigue o penar da sua condição sofredora.
As donas de casa de Santiago saíram com as suas panelas à rua e o poder democrático caiu no Chile banhado em sangue. Nas estradas de Portugal, os camionistas desafiam o povo português e os poderes, bons ou maus, mas que foram por ele constituídos e legitimados.
As estações de serviço estão a secar por todo o lado, as prateleiras das superfícies comerciais esvaziam-se, os produtores deitam à lixeira os produtos do seu trabalho, empresas não recebem os suprimentos de que carecem para produzir, os transportes públicos encostam. Empresas irão certamente fechar acrescentando novos recrutas ao exército dos desempregados. As veias e as artérias por onde flui a riqueza nacional decidiram entupir para melhor asfixiar o cérebro que governa e paralisar os braços e mãos que trabalham. Estupidez não lhes falta e sobra-lhes a ganância.
O poder vai cair na rua, melhor vai cair na estrada. O povo sai vencido, dividido, confuso. A culpa não é sempre do Governo? Se o preço do barril sobe, a culpa é do Governo; se as multinacionais deslocalizam as suas empresas, a culpa é do Governo; se chove ou faz seca, a culpa é do Governo. E que faz o Governo? Defende o povo das emboscadas dos bandoleiros de estrada? Não! Concilia, dialoga, pactua.
E o povo, a arraia miúda, que vê e assiste, o que faz, o que pensa? Que somos os maiores: derrotámos a República Checa por 3-1! Toca a ir para os santos populares a enfardar sardinha assada, escorropichar tintol e cantar o fado.
Depois, se ganharmos o Europeu, iremos todos a Fátima de joelhos.