SEXTA-FEIRA, 12 DE SETEMBRO DE 2008
O Zinga e eu
Ao contrário dos gatos, que não falam mas conversam, os burros não conversam nem falam: limitam-se a olhar e é na profundidade do seu olhar que um homem vê se as suas ideias são aprovadas ou desaprovadas. É vão todo o demais esforço para comunicar ideias: um burro tem uma compreensão aberta mas é incapaz de entender uma explicação para as coisas.
Um burro põe-nos sempre perante problemas práticos. A questão doravante era como fazer e não que fazer. Arranjar mais leite, numa época em que nem os espinhos das acácias se tinham ainda recomposto para servir de alimento às manadas? Estava fora de questão adquirir mais leite aos tuaregues. Da minha parte, iria intervalar o chá de menta com o café à turca temperado com a vagem do cardamomo. Ele que se desunhasse; a ração tinha-a já no buxo, que fizesse como os camelos: não a desperdiçasse. Dito e feito, parecia ler os pensamentos: as quatro patas abertas e bem fixadas no chão, do falo entumecido jorrou em jacto uma urina espessa, quente e espumosa que se dissipou de imediato no chão alaranjado.
Para lhe mostrar quem mandava desenrolei a extensa faixa da tagelmoust. Esperava que o meu rosto expressasse toda a raiva acumulado em sucessivos episódios de cabeça perdida. Pelo contrário, riu-se descaradamente das minhas feições purpúreas provocadas pela tinta que se depositara na cara ao longo do dia. Cedi, rindo também. Não ia desperdiçar a minha reserva de harissa para me mascarar de vermelho. Afinal de contas, é preferivel comer uma chorbabem apaladada do que mostrar a cólera a um burro.
Voltei a enrolar a tagelmoust que me deixou de fora apenas os olhos. Daí a pouco iam levantar-se os ghibli que, como um turíbulo oscilante, espalhariam por todo o lado a poeira do deserto.
Afinal sempre ficavam os olhos que se iriam gladiar como um jogo de espelhos.
(Texto enviado hoje para publicação por Perdido)