O movimento e a forma

in O Lugar e os Monos

16 de fevereiro de 2009

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SEGUNDA-FEIRA, 16 DE FEVEREIRO DE 2009

O movimento e a forma

Ao contrário da maioria dos humanos permito-me dizer, c0m propriedade, que estou com um pé para a cova. Chegando ao outro lado, hão-de pedir-me contas do outro pé. "Ficou por lá", que mais poderei dizer? É que não tenho mesmo outra maneira de descalçar a bota. Mas, adiante!, que não é a isso que aqui venho.

Fiz há dias um esforço para destapar a minha Singer, montar a artilharia do cosimento e pedalar com o pé esquerdo. Inútil! Todo o automatismo da maquinaria do meu corpo foi montado para ter um controlo correcto sobre a perna direita, que continua, imaginariamente, a pedalar sincronizada com o braço que segura o volante.

Na circunstância, a mente continuou a pedalar em trique-taque compassado e, alonjando-se, extraviou-se no negrume da noite à revelia deste tronco carcomido e ingloriamente decepado. Isto está-me a acontecer com frequência. Temo que a infecção se tenha generalizado e atingido alguma área crucial do córtice deixando-me a sofrer da impiedosa doença mental do platonismo.

Até agora ainda não tinha conhecido A Beleza. Passeava-me no jardim e nos campos, e o jardim era belo e os campos eram belos. Em rigor, nem o jardim nem os campos eram belos, porque o jardim é apenas uma abstracção geométrica e os campos não passam de colecções de montes e ribeiros, de vales e de arvoredos, de ervas e de silvas, de flores e de trinados de passarinhos. Na realidade, também não existem arvoredos, mas sim esta árvore, aquela árvore, outra e outra árvore, e cada árvore singular tem a sua beleza própria não se confundindo com a beleza alheia. E, a passear, a beleza de cada coisa concreta entrava-me pelo olhar, pelo ouvir, pelo gostar, pelo cheirar, pelo palpar. A beleza ia transpondo o meu corpo como se este navegasse a cortar sucessivas ondas num mar de sensações cintilantes. A beleza estava ao mesmo tempo nas coisas e no meu andar. A beleza real tem um não sei quê de muscular.

O drama da situação actual é que ando pouco. E não podendo errar, perder-me por aí, deixei de ir ao mundo deambulando e vem o mundo a mim por imagens. Às vezes começo a crer que são as imagens, e não as coisas reais, que são belas. Sinto que a mente ausenta-se e vai por aí à procura do seu graal, essa fortificação erigida em nenhures onde residem todas as formas puras e reina A Beleza abstracta.

Terei sido atingido pela loucura metafísica?